Prezados, boa noite!
Trago-lhes um conto baseado em fatos reais escrito especialmente para o evento de Halloween da Toca do Dragão desse ano.
Quem ainda não ouviu, vá correndo e você poderá ouvir esse e outros belíssimos contos de Halloweens na voz dos mais talentosos podcasteiros da atualidade (@Ricky O Bardo ). Para ouvir, basta clicar aqui que você será redirecionado para o tópico do Toca.
Espero que aproveitem a leitura, e todo o feedback é bem-vindo.
Abraços.
A FAZENDA DO VELHO SCHUTZ
A história que vou lhes contar aconteceu no ano de 1998 em uma cidade no interior de Blumenau, Santa Catarina, a qual irei ocultar propositalmente o seu nome em respeito àqueles que lá viveram – e àqueles que sobreviveram, mas jamais esquecerão os horrores daquele dia.
Antes de iniciar esta história, sinto-me na obrigação de dizer aos leitores que sempre me considerei uma pessoa muito cética. Alguém que sempre desafiou a verdade sobre os eventos paranormais. Um verdadeiro amante da verdade. Duvidava até mesmo dos meus sentidos quando buscavam me alertar do perigo espreitando nas sombras.
Digo isto utilizando verbos no pretérito uma vez que após aquele fatídico dia temo em acreditar naquilo que presenciei, preferindo me isolar sobre o manto da dúvida do que encarar a realidade sinistra que jaz por trás do véu.
Sem mais delongas, contarei como os eventos se sucederam para que vocês possam tirar as suas próprias conclusões sobre a minha ingenuidade e a benção da ignorância.
Chegou aos meus ouvidos uma história macabra sobre uma família de sobrenome Schutz. Contam os populares que era a família de um soldado nazista e sua esposa judia. Um matrimônio que apenas pôde ser concretizado em solo brasileiro. Ele viajou junto de sua amada buscando abrigo neste solo, foi recebido pelos cidadãos e trouxe consigo diversas caixas cujo conteúdo jamais fora revelado.
Os registros dizem que o soldado voltou para a sua pátria após o fim da guerra e consigo levou sua mulher e suas filhas. Àqueles que tiveram contato pessoal com os Schutz, por outro lado, negam veementemente que isso seja a verdade. Os populares dizem que na noite mais escura o soldado matou sua mulher e suas filhas e as enterrou em algum lugar da sua fazenda junto com as misteriosas caixas, sumindo em meio a mata na mesma noite.
Em compromisso com a verdade é que eu decidi viajar para aquele lugar, sabendo apenas um pouco sobre a sua localização. A viagem foi difícil, saí da capital de Santa Catarina e viajei por horas até chegar na capital do meu destino. Durante todo o trajeto senti que algo perturbador me acompanhava, mesmo sem conseguir tocar ou ver, sentia como se olhos famintos me fitavam.
Chegando em meu destino, sabendo de minha expedição, os populares tentaram me alertar para ficar longe da fazenda e do terror que habitava nas matas. Ingenuamente, eu os ignorei, mas se soubesse do que hoje sei, teria dado ouvido aos alertas.
Decidi invadir aquelas terras que todos evitavam. Planejei dormir aquela noite na velha fazenda abandonada, contudo o frio me impediu de prosseguir com o plano.
No dia seguinte, fui mais bem preparado e até convenci um dos populares a me auxiliar na empreitada com uma promessa de alta recompensa em dinheiro.
O acesso à fazenda foi bastante árduo. Pássaros lúgubres nos acompanharam durante todo o trajeto, rondando os céus como se aguardassem uma refeição. O local estava abandonado há muito tempo. As trilhas estavam tomadas pela vegetação. Teias de aranhas e insetos cobriam os restos da fazenda e dividiam o espaço com o mofo e a poeira. Definitivamente não era um local agradável para passar a noite e o cheiro do bolor era tão intenso que me causava náuseas.
Quando avisei da minha intenção de dormir na casa, o popular entrou em desespero e decidiu abandonar a empreitada. Vociferou ofensas, duvidou de minha sanidade e disse que nada de bom poderia ser encontrado ali. Deveria ter ouvido ele, mas decidi passar a noite sozinho naquele lugar.
Estranhos eventos ocorreram após o sol se pôr, iniciando pelo frio noturno que parecia muito mais intenso longe da cidade. O frio penetrava as minhas vestes e cobertores como garras tentando arrancar meu coração. A penumbra era ainda mais assustadora, na escuridão é que jazia o desconhecido, pronto para o bote fatal.
No silêncio da noite o som de facas arranhando o lado externo da casa me parecia irreal. Imaginei, incialmente, ser mero fruto da minha mente cansada, mas o barulho se recusava a dar espaço para o meu descansar.
Tomei coragem e decidi acender minha lanterna para investigar. O chão rangia debaixo de mim enquanto eu me colocava de pé. A madeira cedia como se tentasse me engolir. Caminhei lentamente até uma das janelas, foi somente então que percebi que o afiar de facas tinha cessado.
Mais assustador do que aquele barulho foi o silêncio que o sucedeu. Nem insetos, nem o vento. O silêncio havia engolido qualquer som, senti-me obrigado a gritar para ter certeza de que não estava surdo. Pude ouvir o som de minha voz, mas não consegui dormir pelo resto daquela noite. Decidi que manteria vigilância, não por escolha, mas sim pela adrenalina percorrendo o meu corpo e impedindo-me de dormir.
Fora exatamente quatro horas da madrugada que o ranger da madeira retornou com o som do vento. Soava como gritos de desespero e súplicas de piedade que continuaram até que eu estivesse cansado de mais para me manter vigilante.
Acordei no dia seguinte ainda no interior da casa. Saí e verifiquei os arredores. Analisei as paredes e encontrei diversas marcas na madeira envelhecida, tanto recente quanto antigas. Algo estava por perto e não queria ser descoberto, tive a sensação de que algo muito antigo rodeava aquele lugar.
Continuei procurado por mais algum sinal, pegadas, marcas ou qualquer explicação do que esteve ali, mas não consegui encontrar nada. Quando o sol ia se pôr, decidi voltar para a cidade e passar a noite lá, mas o lugar tinha outros planos.
Embrenhei-me na mata em busca da antiga trilha, mas não a encontrei. Diligenciei por tempo o suficiente para saber que não iria encontrar o caminho de volta à cidade antes do completo pôr do sol, foi então que decidi voltar para a fazenda.
A segunda noite foi ainda pior. Os gritos ecoavam em meus ouvidos disfarçados do uivo do vento. As madeiras rangiam em uma gargalhada torpe da minha desgraça. Não me orgulho, mas agarrei os meus joelhos e rezei por piedade. Nesse momento pude ouvir o estilhaçar de uma das últimas janelas com vidro. O vento invadiu a casa com tamanha ferocidade que uma nuvem de poeira se ergueu, cegando-me momentaneamente.
Cego, eu ouvi o chão ranger novamente em minha direção, mas o barulho não vinha embaixo dos meus pés. A sensação de que algo estava se aproximando e me observava era forte. Tentei abrir os olhos que lacrimejavam por causa de toda aquela poeira. Foi em vão. Quando me recuperei, não havia mais nada naquele lugar.
Estava novamente sozinho, mas a incerteza estava lá. Eu estava realmente sozinho ou fui deixado acreditar em uma ilusão por baixo do véu da realidade?
O vento silenciou. Percebi então aos meus pés uma fotografia preta e branco da família Schutz. Uma fotografia muito antiga, de um tempo em que a casa que eu estava nem mesmo tinha sido erguida. Na fotografia, o fazendeiro e sua esposa grávida estavam embaixo de uma grande árvore em uma paisagem um tanto familiar.
Fiquei observando a fotografia por horas e nem percebi que o sol estava prestes a nascer. Os raios de sol invadiram aquela sala e guiaram-me até a janela. A vista da janela era exatamente igual a paisagem da fotografia, exceto pela ausência da árvore.
Pelas próximas horas fiquei-me perguntando por qual motivo uma árvore daquele tamanho teria sido retirada desta fazenda. Quando não pude mais imaginar motivos, procurei pela casa por respostas para a minha pergunta.
Não achei a chave que queria, mas encontrei uma antiga pá.
Sem pensar duas vezes, fui até o local da antiga árvore e comecei a escavar. O cansaço das duas noites mal dormidas havia sido eliminado do meu corpo, não sentia sono, sede ou fome enquanto cavava naquele lugar.
Trabalhei por horas sem encontrar qualquer coisa, nem uma raiz, nem uma resposta. Peguei a fotografia novamente e tentei traçar padrões e pontos de referência para identificar o lugar com mais precisão. Foi então que me deparei com um morro ao fundo da fotografia, o qual não existia no local da escavação.
Por sorte, olhei aos arredores e encontrei o morro. Ele ficava do outro lado da casa. Sem pensar duas vezes fui ao novo local e iniciei a escavação ciente de que a resposta estava logo ali. Não sabia o que estava procurando, mas sabia que precisava encontrar.
Na ânsia de terminar o serviço, a velha pá se partiu quando colidiu com um objeto duro embaixo da terra. Continuei a escavação com as mãos. A adrenalina estava lá em cima e me impedia de parar.
Após muita escavar, eu estava coberto de barro, mas estava em minha frente uma grande caixa de concreto totalmente lacrada. Não tive forças para continuar a escavação ou para retirar o objeto, apenas consegui escavar o que parecia ser a parte superior daquele túmulo secreto. Era um grande cilindro feito de concreto com diâmetro que superava um metro. Lembrava um poço selado com uma tampa de concreto fundida a sua boca. Como se o que estivesse ali dentro devesse ficar longe de qualquer descoberta por toda a eternidade.
Não sabia o que estava dentro desta construção fortificada, mas era nítido que quem a construiu o fez para esconder algo do mundo.
O sol estava se pondo e iniciando a terceira noite. Precisava me preparar para sobreviver essa noite a qualquer custo. Peguei o resto da pá. Ela estava quebrada e não podia ser usada para escavar, mas era a única arma que eu tinha para me proteger naquela noite.
Retornei para dentro da casa e fiquei observando aquele objeto de concreto por todo o tempo em que a lua me permitiu. A noite parecia aguardar alguma coisa. Os ventos pararam de uivar e o fedor do bolor já não me incomodava mais, foi então que ouvi o ranger da madeira novamente. Olhei em volta e não avistei nada. Acendi a minha lanterna e não havia ninguém. Desliguei a lanterna e o ranger continuou. Liguei-a novamente e o barulho parou.
O barulho estava vindo em minha direção, mesmo assim me arrisquei em desligar a lanterna mais uma vez e liguei-a em seguida quando o ranger retornou, mas dessa vez ele não parou com o acender da luz, ele avançava em minha direção, mas não havia nada que eu pudesse ver. Corri em direção a porta e para longe dele enquanto revistava o lugar com a lanterna acessa atrás de qualquer sinal de movimento.
Comecei a duvidar de mim mesmo, e por me ver em frente a porta de saída, decidi frear os meus impulsos. O barulho despareceu, imaginei que poderia ser algo me querendo do lado de fora da casa. Fui até a uma das janelas e tentei buscar algum movimento do lado de fora da casa. Novamente em vão.
Você já sentiu a sensação de que algo está te observando, mas que você não consegue enxergar? Aquela estranha sensação de que quando você fecha os olhos você está em perigo, mas que ao abrir tudo parece normal?
Fiquei em estado de alerta durante a noite inteira. Comi os últimos dos alimentos industrializados que trouxe em minha mochila. Abri a última garrafa de água. O que quer que eu fosse fazer, teria que terminar antes do próximo pôr do sol.
Antes mesmo de o sol nascer por completo eu já estava do lado de fora da casa atacando o concreto com o que restou da pá. Percebendo que não conseguia danificar o objeto, continuei procurando na casa algo mais resistente e a sorte me agraciou mais uma vez, encontrei uma marreta de ferro. Era o destino sorrindo para mim.
Golpeei o concreto com toda a minha força e pude perceber que meus esforços estavam sendo recompensados. O concreto estava cedendo, golpeei com ainda mais força.
Se eu pudesse voltar no tempo e me impedir de cometer aquela atrocidade, certamente eu seria um novo homem hoje. Aquele evento matou toda a minha curiosidade pelo paranormal e a paixão pela busca da verdade. Deveria ter dado ouvidos aos populares que duvidavam da minha sanidade, certamente o desfecho não seria o mesmo.
O sol estava escaldante. Agarrei a marreta com ambas as mãos e golpeei com toda a minha força, o golpe foi certeiro e parte do objeto cedeu, deixando vazar um odor extremamente agressivo às minhas narinas e que me fez recuar de imediato. Um cheiro de podridão vinha diretamente do concreto, um odor que só poderia ser descrito como o enxofre ardente do próprio inferno.
Nem mesmo este sinal me deteve. Minha ingenuidade era tamanha que eu precisava ver com meus próprios olhos para ter a certeza do que é real. Meu corpo doía, mas minha curiosidade alimentava cada célula do meu ser ao ponto de me fazer enfrentar o inferno e voltar a martelar o lacre daquele objeto.
Após muito esforço é que o lacre se rompeu e pude receber a minha tão aguardada recompensa. Amaldiçoado sejam todos aqueles que me levaram para este caminho sem retorno, que me levaram na busca pelo desconhecido em uma rota que nada de bom poderia ser recuperado. A ignorância é uma benção e eu desejo todos os dias que eu pudesse ter me poupado daquele trágico evento.
O martelo rompeu o lacre. Utilizei de madeiras para escorar a tampa do objeto e alavancá-la para o lado. O cheiro ficou ainda mais intenso ao ponto que meus olhos lacrimejavam descontroladamente. O gosto do fel tomou conta da minha língua e obrigou-me a vomitar tudo que eu tinha comido na noite anterior. Todos os meus músculos gritavam para que eu me retirasse dali, mesmo assim a minha tolice preferiu ir até o fim e olhar para dentro daquele abismo fétido.
O que eu vi ainda hoje me atormenta em sonhos. Antes mesmo que eu pudesse distinguir o que estava dentro, as madeiras que alavancavam a tampa se romperam e me golpearam bruscamente, arremessando-me para dentro daquele fosso.
Afundei em um líquido escuro e tentei me agarrar em qualquer lugar para subir. Senti passear entre as minhas pernas algo pegajoso e úmido. O mesmo eu senti sobre os meus ombros e percorrendo por minhas costas. O desespero tomou conta de mim e tentei escalar o fosso com minhas unhas. Duas delas ficaram presas no concreto enquanto eu caia novamente para aquele líquido viçoso e pútrido.
A sorte decidiu me agraciar uma terceira vez e avistei uma corda caindo em minha frente. Ouvi a voz daquele popular que me abandonara anteriormente e ele me auxiliou naquele resgate. Do lado de fora pude retomar o fôlego e ver com meus próprios olhos que esteva diante do impensável, de algo que estava muito além dos meus conhecimentos. Percebi que estava diante de uma fossa séptica.
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