Enquanto os funcionários do templo estão ocupados com a chegada de um grupo de turistas, o casal pula o cercado que demarca uma área proibida. Com passos rápidos entram por um corredor pouco iluminado.
— Vamos gravar a abertura do vídeo, Sara. — Alex pega o celular, acende a lanterna, afasta dois passos e enquadra a namorada na tela.
— Tá bom, só espera um minuto. — Ela fecha os olhos; respira fundo; passa a mão pelos cabelos e os prende; estala os dedos. — Pronto.
— 3... 2... 1... vai.
— Oi, pessoal, tudo bem com vocês? Desculpa pela qualidade do vídeo, só conseguimos entrar aqui com o celular. Deixa eu explicar porque estamos nesse breu. Nossa ideia era ter ido embora da Síria ontem, mas um morador local contou dessa Mesquita pra gente. — Alex faz sinal para Sara caminhar em frente e a acompanha andando de costas. — Agora vêm a parte interessante: há alguns anos, pesquisadores descobriram ruínas da civilização Suméria no subsolo, ainda não tá liberada pra visitação, é tipo uma câmara secreta que estão escavando.
Alex gira o celular para o próprio rosto.
— Gente... isso aqui é muito antigo. — Ele aponta o facho de luz do celular para as paredes. — Parece coisa de outro mundo.
— Esses túneis têm uns cinco mil anos... é de antes das pirâmides — Sara complementa.
Diferente do salão principal da Mesquita do qual vieram, restaurado aos mínimos detalhes, tudo ali lembra ruínas milenares. As paredes, construídas com rochas negras encaixadas, reluzem à luminosidade em um brilho opaco esverdeado. No alto, no teto e nas laterais, faixas prateadas possuem símbolos deteriorados pelo tempo, desenhos de formas estranhas e animais parecidos com répteis.
O corredor íngreme se estreita à medida que avançam. Escoras de madeira, calçadas no chão e no teto, obstruem o trajeto. Desviando por entre os obstáculos, o casal segue em silêncio acompanhado pelo ruído dos passos.
— Devia ter trazido uma blusa. — Sara se arrepia com o ar gélido que a envolve.
Ambos respiram ofegantes. Sara olha para trás. Ao longe, como um ponto flutuante, enxerga a silhueta da entrada do túnel.
— Não é melhor voltar? — pergunta.
— Relaxa, a gente tá chegando.
Alguns passos adiante, Sara olha novamente e já não vê mais nada além de escuridão. Distraída, escorrega em uma pedra e solta um grito.
— Calma, fica quieta. — Alex se vira com olhar furioso.
Por mais que tente manter o controle, Sara é tomada por uma sensação ruim: não era uma boa ideia estar ali. Não proíbem a entrada sem nenhum motivo, pode ser perigoso. E se desabar? Estão cada vez mais fundo, morrerão soterrados, se não for pelo impacto, pela fome ou sede.
— Vou voltar — diz sentada no chão ainda na posição em que escorregou.
— Agora que já viemos até aqui? — Alex se abaixa e segura nas mãos dela. — Chegamos no túmulo, filmamos o que tiver lá e vamos embora. Cinco minutos, prometo.
Vozes da superfície os alcançam no corredor, parecem no idioma árabe local. Alguém viu eles? Agachado na sua frente, Alex faz sinal para que Sara fique em silêncio. As mãos dela tremem e o coração acelera. Para alívio dos dois, as vozes cessam assim como iniciaram. O rapaz estende a mão e ajuda a namorada a se levantar.
— Para de gravar — Sara sussurra.
Ele pausa a gravação e a abraça.
— Não foi nada. Relaxa.
— Eu não gosto desse lugar.
— Vamos, a gente já deve tá chegando.
De mãos dadas, ambos seguem cortando pela escuridão, Alex na frente iluminando com o celular o túnel cavernoso, que faz uma curva para a esquerda. Sara aperta a mão de Alex e paralisa.
— Tem alguma coisa ali.
Alex ergue o celular e revela um borrão esbranquiçado alguns metros à frente.
— É um pedaço de pano amaldiçoado — ele brinca.
— Você é um idiota. — Ela solta a mão do namorado.
O celular de Alex emite uma notificação: está com menos de 10% de carga restante.
— Você tá com a bateria aí? — pergunta.
— Não. Ficou com a câmera na entrada.
— Que merda, o seu tá carregado?
— Trinta por cento ainda.
Alex puxa o tecido estendido como uma cortina. Demarca o fim do túnel e o início de uma sala redonda. O teto é mais alto, o que oferece um alívio ante a sensação de sufocamento do túnel que deixaram para trás. Fios cruzam o piso, Alex os segue até um suporte com refletores, inspeciona a luminária e encontra um interruptor. A sala se ilumina com uma luz forte e ofuscante, que obriga Sara cobrir o rosto com o antebraço.
De cada lado da sala, dois túneis seguem em direções opostas.
— Vai por esse que vou por aqui. — Alex aponta para o túnel do lado direito de Sara.
— Nem a pau que vou sozinha.
— Vai demorar mais.
— Foda-se.
Sem dizer nada, e com uma expressão azeda, ele se vira e entra pelo túnel ao seu lado. Sara vai atrás. Caminham cerca de cinco minutos e a iluminação da antessala logo não os alcança mais. O ar é tomado por um cheiro químico quando chegam a outra sala redonda, idêntica em tamanho à anterior. Alex ilumina ao redor e fica frustrado.
— Não tem nada aqui.
— Espera — Sara diz. — Tá ouvindo isso?
— Isso o quê?
— Para de andar, fica quieto. — Sara se debruça sobre o chão e encosta o ouvido no piso. — Tem alguma coisa aqui embaixo.
Com a luz do celular, Alex ilumina o piso em busca de alguma entrada e vê uma barra de ferro, caminha até o objeto e o pega. Bate a ponta contra o solo, ouve com atenção o som em resposta. Sara se levanta e o observa caminhar pela sala repetindo o movimento.
— Aqui — ele diz batendo mais forte em um ponto do piso. — É oco, deve ser uma entrada oculta.
Sara se aproxima e se assusta quando Alex acerta o solo com toda força usando a barra de ferro.
— Você tá doido.
Ele a ignora e atinge de novo no mesmo local, agora com ainda mais violência.
— Vamo embora, Ale... — Sara para de falar quando o piso racha e cede.
— Tá vendo, é uma entrada.
Alex se debruça sobre o buraco e ilumina o interior. Com cuidado, senta na beirada colocando as pernas para dentro.
— Tá zoando que você vai entrar ai!?
— Não vim até aqui pra nada. Pega o seu celular e filma.
Sara pensa em finalmente desistir daquela ideia, mas ela sabe que Alex não vai ceder e não gostaria de retornar sem ele. Só de imaginar o trajeto da volta sozinha é tomada pela angústia. Sempre considerou a combinação dos dois uma união perfeita: Alex era impetuoso, desastrado, adorava explorar; ela planejava cada detalhe das viagens, era do tipo que chegava em um local com o roteiro pronto para cada dia, isso a deixava confortável em situações desconhecidas. Porém sem a espontaneidade de Alex, em todos estes anos que tinham o canal de viagens, não teria visto tantas coisas diferentes. Contra o instinto que a diz para não seguir em frente, ela saca o celular e começa a filmar.
— Acho que a gente quase foi pego lá atrás — diz olhando para a câmera e depois a vira na direção de Alex. — Esse lugar é muito estranho, depois de descer aquele túnel, a gente chegou nessa sala. O mais doido é que o Alex achou essa entrada no piso.
A câmera enquadra Alex na tela, que dá tchau e pula dentro do buraco agarrado à barra de ferro. Sara estende o braço como se fosse possível segurá-lo, mas em um segundo, ele some de vista. Ela se aproxima da entrada e finge não estar surpresa:
— Esse meu namorado é maluco gente.
— Vêm, pode descer, não é alto — Alex grita lá de dentro.
Sara ilumina o interior, mas vê apenas a silhueta da sombra de Alex.
— Não acredito que tô fazendo isso.
Ela senta na borda com os pés para dentro e deixa o corpo deslizar. Alex apara sua queda a abraçando. Antes que ela possa se orientar, ele já se virou de costas e segue pelo corredor estreito. Sara o acompanha e até se esquece do celular ainda gravando. Tensa, não consegue pensar em nada, é como se a sua mente estivesse desligada. Apenas segue Alex, confiante que tudo ficará bem.
Não demora nem um minuto para chegarem ao fim do corredor, acabam em uma espécie de caverna ampla, iluminada por uma luz amena e difusa, que irradia de algum ponto à frente.
— Será que é uma formação natural ou escavaram isso tudo? — Alex diz direcionando os fachos de luz ao redor com um sorriso no rosto. — Olha o tamanho desse lugar, é incrível...
— É assustador, isso sim — Sara resmunga.
Uma nova notificação no celular de Alex mostra apenas 5% de bateria.
— Vou desligar meu celular, me dá o seu. — Alex estende a mão e Sara entrega o celular.
Enquanto Sara não ousa dar um passo sequer, abraçada ao próprio corpo, Alex caminha em direção aos fundos da caverna. Hesitante, ela o segue.
A luz irradia de uma parede com textura como a carapaça de um inseto. A superfície é revestida por placas grossas e negras intercaladas com porções fibrosas, como músculos amarelados. Ao mesmo tempo que parece inanimado, não a carcaça de um animal gigantesco, também não se assemelha com uma construção humana ou algo artificial.
Ambos se aproximam e Sara abre a boca levando as mãos ao rosto. O medo se mistura com entusiasmo:
— Que porra é essa, Alex?
— Deve ser a nave do alien — responde rindo e inspeciona a parede com a palma da mão.
— Não toca nisso. — Sara o puxa pela camisa.
— Relaxa, deve ter uma explicação natural pra esse negócio.
Alex estende o celular para Sara.
— Ilumina pra mim.
Ela o observa enfiar as duas mãos por entre as carapaças. Seja o que for aquilo, cede ao esforço de Alex e faz um barulho de rasgo acompanhado de estalos. Uma fenda estreita surge, das laterais escorre um líquido também amarelado, como se fosse sangue. Sara ilumina o interior, mas não consegue distinguir nada do outro lado.
Uma sombra passa na frente da luz e ela grita.
— O que foi? — Alex a observa.
— Você não viu? Uma sombra passou lá dentro.
— Foi impressão sua, Sara. Você deve ter mexido o celular sem perceber.
Alex pega o celular das mãos dela, que tremem ansiosas como se tivesse tomado dois litros de café.
— Alex, tô falando sério. Não vou entrar aí.
— Espera aqui então.
Ele passa a perna pela fenda, abaixa-se e, com esforço, empurra o corpo para dentro.
— Você tá bem? O que tem aí?
Nenhuma resposta.
— Não brinca, Alex.
Sara olha pela fenda, mas ainda não vê nada e, preocupada, aproxima-se para olhar mais de perto.
O rosto do namorado surge de repente, e ela grita.
— Puta que pariu. Sério... vou te deixar aqui se fizer graça de novo.
Ela se afasta com a mão no peito.
— Entra aqui e me filma.
— Nem a pau.
— Vamos logo, a bateria do celular vai acabar e vamos ter que voltar no escuro.
Convencida, Sara se esgueira também pela passagem.
O lado de dentro é tão estranho quanto o exterior, porém menos frio. É como se estivessem dentro de um organismo, que um dia foi vivo. No teto, as mesmas fibras musculares que formam a parede externa se entrelaçam em uma membrana enegrecida, em alguns pontos, escapa a luminosidade amarelada. No meio, algo como uma espinha atravessa toda a sala, dela se prolongam estruturas em formato de arco que acompanham a parede até o chão. Como se fossem costelas. Se aquilo tudo fora construído por alguma civilização humana, possuíam uma tecnologia muito diferente da atual.
Sara sente um frio na barriga, como se olhasse para um precipício, mas não contém o súbito interesse que emerge:
— Você tá filmando? — pergunta admirada.
— Claro, olha pra isso tudo que loucura. — Alex vira o celular para o próprio rosto. — Vocês vão dizer que é fake, mas foda-se.
O sinal da bateria acende no canto da tela no celular e Alex coloca no modo de economia de energia.
— Estou ouvindo o mesmo som de novo, o de lá de cima — Sara sussurra. Misturado ao silêncio, o local parece tomado por murmúrios que ressoam dentro da câmara subterrânea.
— Não ouço nada. — Ele olha para os lados, cerrando o semblante concentrado tentando captar algum som.
O chão, após a entrada, torna-se úmido e lodoso. Alex atravessa a sala sem cuidado, desliza e afunda o pé.
— Que merda — resmunga olhando para os tênis brancos. Ele filma as próprias pernas desatolando da lama esverdeada. — Isso vai dar um bom corte.
Chegam a uma sala maior, o teto em forma de cúpula irradia uma luminosidade opaca como se fosse a luz do sol atravessando de forma difusa. Alex se aproxima do pilar que sustenta o centro e enxuga o suor do rosto: o ambiente é quente feito uma estufa. Com o celular, ilumina ao redor revelando diversos bulbos que crescem do chão cobertos com um musgo esverdeado. Não se parecem com plantas, mas um deles desabrochou como uma flor.
Sara olha admirada: é uma cena surreal. Quando dá por si, Alex está do outro lado da sala saindo por um corredor à direita. A luminosidade da lanterna do celular quase desaparece. Dá um passo à frente para segui-lo, mas o pé também escorrega. Cai com as mãos espalmadas e a cara no chão. A substância pegajosa gruda em seu rosto e roupa. O cheiro é rançoso.
A sala fica na penumbra, a luz amarelada mal consegue definir as silhuetas dos bulbos ao seu redor. Sara flexiona as pernas para se levantar, tentando apoiar os joelhos e cotovelo. Algo se aproxima atrás dela, o som como de uma cobra deslizando. Alguma coisa sobe pelas pernas, o toque é gelado. Paralisada, Sara tenta gritar para Alex, mas nenhuma palavra escapa da boca. Aquilo vai escalando seu corpo, serpenteando, a superfície rígida e áspera machuca a pele. Entra por debaixo da blusa e sobe acompanhando a espinha até a altura da nuca. Sara finalmente grita quando presas penetram a carne.
Alex volta correndo, tropeça e desliza pelo caminho. Encontra Sara no chão e, acima dela, uma sombra esguia com mais de um metro de comprimento. Solta o celular e com a barra de ferro tenta afastar aquilo, mas a coisa se enrola na barra e a puxa com violência fazendo o objeto voar pela sala. O ser desconhecido sai de cima do corpo de Sara e investe contra ele, rasteja como uma mistura de serpente e inseto gigante. Assustado, Alex corre na direção de onde veio com a criatura em seu encalço.
Sara acorda.
Não se lembra de nada após ter caído e sido atacada. Passa a mão na nuca e sente sangue coagulado, quase seco. Sua visão se ajusta, permite ver o facho de luz solitário do celular ao lado do pilar, no centro da sala. Ela se levanta e o pega do chão: só tem 15% de bateria. Quanto tempo havia ficado desacordada? Onde está Alex?
De imediato, ela desliga a lanterna. O medo da escuridão a aflige, porém precisa economizar bateria enquanto pensa. O silêncio absoluto a conforta ao passo que a mantém imóvel e alerta: qualquer ruído poderia atrair a atenção da criatura. Alex não iria embora sem ela, nunca. Mas se ele não voltou... não quer pensar no que pode ter acontecido.
Ela olha para o lado e vê a barra de ferro. Abaixa-se, agarra com firmeza o objeto metálico e, possuída por uma coragem que desconhecia, acende novamente a lanterna e segue pelo corredor. O ruído dos passos adentrando as entranhas daquele lugar esquecido ecoa solitário.
Fraca, parece lhe faltar forças. Tal qual o celular, sua energia é drenada a cada minuto. As pernas vacilam e a visão turva dá impressão que tudo pulsa ao redor.
Em uma outra sala, quase idêntica à anterior, inspeciona o chão e encontra a camisa rasgada do namorado. Uma pressão intensa toma o peito, as mãos se fecham com força ao redor da barra e celular. Os olhos enchem de lágrimas, mas ela segura o choro: não pode se descontrolar, precisa se concentrar, precisa encontrar Alex.
Sara recolhe a camisa e continua em frente. Atravessa por outras câmaras estranhas, algumas possuem estruturas parecidas com máquinas, que se interligam entre si, mas tudo possui aparência orgânica como se fizessem parte de uma criatura engenhosa e imensa.
O celular notifica ter apenas 10% de bateria restante. Isso significa, com sorte, mais trinta minutos para voltar: se encontrasse Alex, ainda teria tempo. Pensa em gritar alto o nome dele, mas o medo a faz ficar calada.
Sara entra pelo próximo corredor e suspira fundo. Abatida, senta e encosta na parede. Está prestes a desistir. Foi muito burra. Devia ter convencido Alex a voltar. Em que merda se enfiaram? Tudo aquilo é surreal. Desiste de tentar raciocinar, de tentar compreender a origem daquele lugar. Só quer sair dali e agradecer a Deus todos os dias se deixar aquele buraco com vida.
Um som arfante interrompe os pensamentos. Ela levanta o rosto na direção dele e uma silhueta surge no fim do corredor. Gostaria de pensar que é seu namorado: possui braços e pernas, parece humano. Mas algo não está certo, se fosse Alex, já a teria chamado pelo nome e se aproximado. Sara se levanta e recua dois passos. A silhueta permanece imóvel. Sara levanta o celular com esforço contra o vulto, as mãos tremem sem controle. O rosto de Alex é iluminado revelando olhos brancos e pele avermelhada, descascando. Atrás dele, algo se debate como uma cauda nascida da base da cabeça.
Sara vira e corre. Ao som do movimento, o ser do outro lado também sai da inércia. A perseguição atravessa por todas as salas percorridas. Sara não ousa olhar para trás: o som da coisa em seu encalço é suficiente para que corra o máximo possível. Chega até a sala por onde entraram no que parecia o corpo de uma criatura. Sara se espreme pela fenda na parede e atravessa.
Do outro lado, finalmente olha para trás, o rosto de Alex surge na fenda. Como um déjà vu de antes. Nem nos pensamentos mais sombrios imaginou algo assim.
Alex, ou a criatura que o possuiu, passa uma perna e um braço pela fenda. Sara coloca o celular no chão e segura a barra de ferro com as duas mãos. Ouve algo se aproximar atrás dela. Os ruídos se tornam mais altos.
É o fim?
Um homem uniformizado passa por ela e agarra Alex saindo da fenda. Um funcionário da Mesquita? Sara corre e o ajuda a conter o namorado. Eles lutam. O homem grita palavras em árabe enquanto Sara dá a volta por trás de Alex e segura a criatura com uma das mãos. É esguia como uma serpente, porém possui patas e uma escama negra e grossa. Com a outra mão, enfia a barra de ferro entre a pele dele e a criatura, fazendo alavanca, em resposta a coisa se desgarra, cai e rasteja para a escuridão.
Alex desmaia e é aparado pelo funcionário, que estende o seu corpo no chão e se volta para Sara, dando as costas para a fenda. Ele continua falando palavras incompreensíveis em seu idioma. Sara recupera o celular e ilumina o rosto de Alex. Não há sinal de que ele vai acordar, parece preso em um sono profundo.
O homem para de falar. O silêncio domina o ambiente. Um líquido quente escorre na mão de Sara. Ela olha pra cima e vê o peito do homem atravessado por uma ponta comprida e escamosa, como uma estaca. O homem cospe mais sangue, dessa vez respingando no ombro e perna dela.
Em desespero Sara pega Alex pelos braços e o arrasta. Exausta, não consegue se afastar muito e cai.
A coisa se levanta atrás do funcionário da Mesquita, um vulto com mais de dois metros, a cabeça chata e comprida como de um réptil, porém se ergue sobre duas pernas e possui longos braços. É uma mistura da criatura de antes com um ser humano, como uma mutação genética. Uma metamorfose.
Com um movimento rápido da cauda, ainda atravessada no peito do homem, a criatura o joga para longe. Seus olhos amarelos brilham na penumbra voltados para Sara, que se levanta e olha para Alex desacordado. Não tem escolha: ou tenta fugir ou vai morrer junto dele. Pode voltar com ajuda. Precisa agir rápido. Segura o celular e dispara correndo em direção a saída.
A criatura emite um guinchado que ecoa pela caverna e a segue.
Ao chegar no corredor de onde vieram, Sara se vira e encara o ser estranho. Em um gesto automático, ergue o celular na frente do rosto direcionando a luz da lanterna contra a coisa, que guincha e recua. Sem perder tempo, Sara se vira e continua pela passagem até chegar no buraco feito por Alex com a barra.
Ela segura na borda e apoia as pernas na lateral. Com o resto das forças, arrasta-se para cima. Aquela coisa é imensa, com certeza não passaria por aquele buraco. O breve alívio de ter escapado termina com a luz do celular se apagando: está na completa escuridão.
Abaixo dela, ouve garras abrindo caminho e raspando as laterais rochosas. Sara precisa fugir, mas não sabe sequer qual direção tomar. Levanta e tateia o ar até encontrar a parede. Segue acompanhando a superfície sólida e encontra o vazio do corredor. Corre em disparada com o ruído áspero das garras logo atrás.
Após alguns segundos cambaleando pelo corredor surge a luminosidade do refletor. Um fio de esperança percorre seu corpo: a criatura parecia ter medo da luz. Ela encontra forças para correr, mas alguns passos a frente, quase chegando na sala iluminada, algo se enrola no pé dela e puxa. Cai no chão. Indefesa, as patas pesadas pressionam suas costas. Falta ar. Sara fecha os olhos e aguarda o golpe mortal.
A criatura guincha e sai de cima dela, caindo entre eles e a saída.
Sara abre os olhos e vê uma luz preencher o corredor. Olha para a origem da luminosidade e Alex surge segurando o celular. Como é possível? Ela se lembra de vê-lo desligando e guardando no bolso... ainda devia ter carga.
Alex se aproxima e a ajuda a levantar. Abraçam-se brevemente enquanto o som estridente emitido pela criatura ecoa pelo corredor.
Mais alguns metros e alcançarão a sala com o refletor, porém a criatura está acuada entre eles e o outro lado.
— O que vamos fazer, Alex!?
— Fica aqui, vou tentar afastar essa coisa com a luz.
Alex toma a frente, em uma mão a barra de ferro e, na outra, o celular. Com passos lentos e cuidadosos, aproxima-se da criatura, que recua até a entrada da sala iluminada.
Em uma fração de segundo, a coisa encolhe, emite um sibilo alto e salta sobre ele.
Por reflexo, Alex se joga para trás e escora a barra de ferro no chão: a criatura cai sobre ele. Alex sente o sangue ácido escorrer do ventre dela, empalada pela barra, e a pele queimar em contato com o líquido viscoso amarelado.
Sara corre e tenta puxar a criatura que se debate em cima de Alex, mas garras a impedem acertando seu rosto e rasgando.
— Você tem que ir, Sara. Corre!
Ela consegue passar pro outro lado da luta e alcançar a sala iluminada, mas não para fugir. Olha para o refletor e se aproxima. Segura o pedestal com as duas mãos e o arrasta até o corredor. Vira a luz intensa de LED contra a criatura e a claridade a faz se debater e guinchar ainda mais. Alex aproveita a oportunidade e se desvencilha saindo debaixo dela.
Ambos sobem pelo túnel como podem, disparando. Só param quando chegam no salão principal da Mesquita.
É noite e está tudo trancado. Todos já foram embora. Batem na porta da frente desesperados e, alguns segundos depois, ouvem a fechadura girar. As portas abrem revelando dois guardas assustados.
O casal corre para fora. Aliviada, Sara respira o ar livre da noite e não contém as lágrimas. Alex a abraça. Pouco tempo depois, uma ambulância chega para levá-los.
Sara acorda em uma cama de hospital. Não se lembra de quase nada após a fuga. Olha para a cama ao lado vazia. Onde está Alex? Com dificuldade, vira de lado, arrasta as pernas e se senta com os pés apoiados no chão. A cabeça lateja e a nuca coça sem parar. Cambaleante, se levanta e caminha até o centro do quarto dividido por uma cortina azul. Ela puxa.
Na parede oposta, em um quadro iluminado, vê diversas radiografias. Em uma delas, um raio-x de um crânio. Sara se aproxima e o observa de perto: na base da coluna, ao lado do cérebro, uma silhueta esguia aparece na imagem, como uma serpente. A cabeça lateja e a nuca coça sem parar.
Gostou do conto? Telegram / Instagram
Fiquei um tempo sem escrever e decidi por algumas técnicas de storytelling que andei estudando em prática. Para quem chegou até aqui, espero que tenha gostado da leitura e qualquer crítica é muito bem vinda.
Algumas observações para quem tiver curiosidade:
Pensei nessa história como um filme found footage, tive essa ideia ao assistir um casal no youtube explorando um templo com uma passagem que descia até o subsolo. Fiquei imaginando uma história sobrenatural que aconteceria em uma situação dessas. O desafio foi tentar imprimir essa dinâmica destes filmes, com movimentos constantes e ações rápidas. Por tal motivo, preferi escrever no presente. Mesmo em terceira pessoa, gosto de limitar o narrador a um personagem específico, pois isso permite explorar melhor situações inesperadas. Neste caso preferi focar na Sara, por ser mais racional e observadora, me ofereceu mais oportunidades de trabalhar as situações e descrições.
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