O sol brilhava forte nos céus de Cartago naquele dia, era verão e naquela época do ano o sol sempre castigava a região da Bacia do Mediterrâneo. A luz brilhava nos olhos cheios de esperança dos cartaginenses, sua terra natal havia sido destruída há pouco mais de 10 anos com o fim da Segunda Guerra Púnica contra os monstros de Roma, porém com seu poder de comércio e com a perseverança para prosperar novamente, os cartaginenses reconstruíram suas vidas, dando uma nova chama de esperança para sua população. Alguns diziam que era loucura alimentar o ódio e as guerras contra Roma, já que Cartago sempre foi governada por comerciantes e não generais, mas isso não importava para os líderes da cidade. Para eles, Roma tinha inveja do sucesso comercial de Cartago, que, durante o período anterior à Primeira Guerra Púnica, chegou perto de dominar o comércio marítimo no Mediterrâneo, e não gastariam esforços para destruí-los, tudo não passava da famigerada sobrevivência do mais forte e Cartago brigaria por essa sobrevivência até o fim.
O Mercado da cidade estava movimentado como sempre, vários navios atracavam nas docas, trazendo e levando mercadorias, enriquecendo novamente os cofres cartaginenses, uma nova era de prosperidade emergia. Mesmo com os pesados impostos pagos a Roma, Cartago conseguiu pagar sua dívida. O que os Patrícios imaginavam que perduraria por 50 anos, foi pago na primeira década após o fim da guerra, uma resposta rápida que certamente enfureceu os romanos. O mercado era uma bagunça, tendas de todas as cores protegiam as mercadorias dispostas no chão sob tapetes, um mais colorido que o outro. As pessoas gritavam e pechinchavam ao mesmo tempo, um festival caótico que surpreendentemente funcionava. Pessoas de todos os cantos do mundo se acotovelavam em busca de espaço para comprar os melhores produtos antes que acabassem ou antes que os comerciantes dobrassem os preços.
Passando pelo mercado, depois do templo do Deus Baal Hammon, representado por um homem velho, com chifres de carneiro e uma grande coroa com três arcos, cuja estátua gigante e imponente protege a praça dos templos, é possível chegar nas docas de Cartago, o ponto de partida do comércio da cidade. Nas docas, a movimentação era rápida, nenhum marinheiro queria perder tempo, havia tanto dinheiro envolvido com o comércio marítimo em Cartago que cada momento perdido era um saco de moedas a menos. Homens esbravejavam em línguas desconhecidas, brancos, negros, amarelos e pardos, bandeiras de todas as cores, Cartago era um paraíso para qualquer um e para todos. No Mediterrâneo, perto dali estava um pequeno barco de pesca, um homem pardo com pele escurecida pelo sol, roupas de tecidos leves em tons de areia para aliviar o calor e calvo se preparava para lançar a pequena rede na água. Após joga-la, o homem se virou para o único mastro de sua pequena embarcação, ali, encontrou seu pequeno neto, sentado no chão, encolhido. - Levante-se menino! Teus pais lhe nomearam como Aníbal em homenagem a nosso grande general, está desonrando seu nome encolhido aí, com medo da água! - Disse o homem com um tom forte, mas ainda assim com afeto. - O garoto levantou a cabeça para observar o avô em contraste com o forte brilho do sol e tapou os olhos com as mãos. - Hahahahahaha! Não te ensinaram a não olhar para o Sol, Aníbal? Se ele queima nossas peles imagina o que não faz com os olhos? Levante-se daí e venha me ajudar, os peixes não irão pular no barco por conta própria. - O homem ajudou o garoto a se levantar. Aníbal, a passos lentos, aproximou-se da beira do barco e olhou boquiaberto para onde ficava a fortificação dos exércitos de Cartago. Seu medo deu lugar à excitação ao ver que uma manada de Elefantes de Guerra seguia para dentro da muralha. As criaturas eram imponentes, graciosas e antigas, seu caminhar fazia o chão tremer e o som de seus barridos ecoava acima da gritaria dos mercados. O homem parou ao lado do neto e pôs a mão em seu ombro enquanto olhava a marcha das feras. - É a primeira vez que os vê dessa forma? - Perguntou o avô. - É sim... é incrível! - O homem olhou para seu neto, ajoelhou ao seu lado e olhou em seus olhos. - Já lhe contei a história de como Aníbal Barca, nosso grande general, atravessou os Alpes até a península itálica com um exército de elefantes? - O garoto ficou boquiaberto enquanto olhava assustado para o avô - Ele... Ele atravessou uma montanha... com um exército de elefantes? - O garoto não acreditava no que ouvia - Hahahahaha, é sábio de sua parte não acreditar, nem mesmo os romanos acreditaram quando viram Aníbal marchando com os elefantes, ele mesmo montava em um deles. - O garoto estava agitado, sequer se lembrava de seu medo do mar - E como foi, vovô? O que aconteceu? - O avô contou com orgulho - Barca liderou nossas tropas da Península Ibérica até a Itálica, por todos os cantos que passava, tropas se juntavam a ele, ninguém fechava os portões para o homem que trazia a possível destruição de Roma. Pouco a pouco, nossos exércitos foram crescendo até se tornarem uma poderosa força, todos unidos para destruir os Patrícios de uma vez por todas! A jornada foi difícil, os Romanos ainda não sabiam o que vinha até eles, mas parece que seus Deuses encontraram formas de atrapalhar a Marcha de Barca. - O garoto estava perplexo, não havia escutado histórias sobre os Deuses Romanos antes, aquela era uma chance de ouro - Os Deuses... O que fizeram, vovô? - O homem tinha o semblante sério - Barca queria surpreender os Romanos a qualquer custo, para isso, decidiu atravessar os Alpes para solicitar ajuda das tribos Gaulesas e partir para o ataque direto a Roma, Barca acreditava que os Gauleses se uniriam a ele para destruir Roma, já que estes tentaram algumas vezes no passado. Foi aí que os Deuses Romanos agiram. Não só os Gauleses se recusaram a juntar-se a Barca, como também atacaram suas forças. Uma guerra é algo brutal e difícil, Aníbal, consegue imaginar o quão difícil deve ser lutar subindo os Alpes, em meio a neve, com um exército de elefantes? Aquilo foi um golpe brutal dos Deuses Romanos. Embora Barca tenha ganhado a batalha contra os Gauleses, perdeu muitos homens ali, grande parte dos Elefantes também morreu, seja por ter caído dos Alpes, pelo frio ou durante a batalha mesmo, mas Barca não desistiu! Ele derrotou os Gauleses e desceu os Alpes em direção a Itália e o ataque começou! - O garoto mal podia conter a empolgação, começava a pular e correr para todo lado, queria mais, estava ávido pela história - Barca atacou com punhos de ferro, meu jovem, se acha que os elefantes em marcha já fazem a terra tremer e impõem medo, precisa vê-los partindo para o ataque, esses animais se transformam em bestas selvagens, seus barridos racham os céus e seus pés racham a terra. Soldados romanos voavam pelos ares e eram pisoteados com o avanço dos elefantes, Barca, montado em seu próprio animal, ia na frente, seu elefante matou tantos romanos que a figura de Barca era tratada como demoníaca entre os Patrícios. Estávamos perto da vitória, mais um pouco e Roma cairia, teríamos nossa vingança, finalmente! Mas a diabrura dos Deuses romanos não tem fim, Aníbal... - O homem não conseguiu esconder a tristeza no olhar, a excitação do garoto cessou enquanto olhava para o avô, estava aflito para saber o que aconteceria - Barca estava certo da vitória, recusou um pedido de paz por conta dos Romanos, sim... Ele queria ir até o fim, achou que eles estavam se acovardando, acreditou demais em sua vitória, os Deuses Romanos o amaldiçoaram com o orgulho. Mais uma vez Aníbal lançou um ataque contra os romanos, porém, ao encontrá-los no campo de batalha, ele percebeu que estavam diferentes, sua formação havia mudado, parecia até que iriam dar espaço para os elefantes andarem livremente e pisoteá-los até a morte. O orgulho amaldiçoado de Barca o cegou naquele momento. - Subitamente, o homem parou a história ao perceber o balanço do barco, notou que haviam se afastado de Cartago, mas ainda conseguia vê-la ao fundo, bem longe. - Ora, parece que nos distraímos, não é mesmo? Venha, vamos voltar, lhe conto o resto depois - O garoto berrou em protesto, correu e se negou a ouvir o avô, queria saber o resto da história. O homem enfim cedeu. - Tudo bem... eu lhe conto o resto, onde estava...? Ah, sim. O orgulho de Barca o cegou, com a certeza da vitória ele avançou com seu exército para cima dos romanos, mataria a todos sem piedade, foi quando notou que os romanos se abriram em grandes corredores, como se dessem licença para os elefantes passarem. Aníbal riu do que para ele era a aceitação da derrota e partiu, cego pela glória de derrubar Roma. Eis que a diabrura dos romanos se mostrou, os soldados que estavam a frente puxaram trombetas mágicas e assoaram o instrumento maligno, o som superou até mesmo os barridos dos elefantes. As feras ficaram completamente amedrontadas pelas trombetas mágicas, correram sem rumo, tomadas pelo medo e entraram nos caminhos abertos pela formação dos romanos. Foi nesse momento que eles brandiram suas armas e mataram os elefantes. Um a um as bestas foram caindo, mortas pelo efeito maldito da bruxaria dos romanos. O garoto estava amedrontado, ao imaginar uma magia capaz de fazer uma trombeta botar medo em um exército de elefantes ele começou a tremer, o avô continuou - A grande força de Aníbal havia caído. Com a morte dos elefantes seus exércitos começaram a ser rechaçados e ele teve que optar pela retirada, humilhado pela bruxaria romana, uma derrota inimaginável. Ali morreram nossas esperanças de vingança, os malditos Patrícios recorreram de bruxaria para se salvar... imundos! Barca se recusava a voltar para Cartago, atacaria Roma com o que tinha, mas sabia que era pouco. Nunca fomos soldados, meu neto, somos uma cidade de comerciantes e pescadores. Os aliados conquistados por Barca em seu caminho para Roma, ou morreram na luta contra os Gauleses e Romanos ou voltaram para casa ao perceber no que estavam se envolvendo. Sem seus elefantes e com um número muito reduzido de tropas desestabilizadas, ele sabia que encontraria a morte, mas queria morrer tentando, queria morrer em batalha... até que recebeu a carta... - O garoto estava triste, saber que o grande general, cujo nome lhe foi concedido como homenagem, havia sido derrotado pela magia nefasta dos romanos era triste. Sentia orgulho de seu nome, raiva dos romanos e tristeza pelo ocorrido. Sua atenção voltou-se à história quando seu avô deu continuidade - Na carta, Asdrúbal, líder de nossa amada Cartago naquela época, avisava a Barca que Cipião Africano, o comandante do exército romano, atacara Cartago enquanto Aníbal atacava Roma. Nela, Asdrúbal solicitava o retorno de Aníbal para proteger sua cidade. Sem saída, nosso grande general teve que voltar para casa, apenas para ver nossa cidade ser quase destruída por Cipião e nossa segunda derrota contra os romanos ser oficialmente declarada. É uma história cheia de gloria, mas também cheia de tristeza. Não fosse pela diabrura dos romanos, teríamos derrubado sua cidade, libertado o Mediterrâneo de sua ganância e vingado nossos irmãos que morreram na primeira e segunda guerra. Te contei essa história para que entenda, Aníbal, que devemos ser fortes. Mesmo o mais bravo de nós teve derrotas em sua vida, mas ele continuou lutando. Precisa vencer seus medos, meu neto, e ser tão forte quanto Aníbal Barca! Os olhos do garoto se encheram de alegria, ainda teria um grande caminho a percorrer, até finalmente vencer seu medo do mar, mas certamente lutaria até o fim, assim como Barca.
Os dois começaram a voltar a Cartago, estavam muito longe, demoraria um tempo considerável para alcançar as docas, o homem se surpreendeu ao repara quão forte as ondas estavam, era estranho que tenham andado tanto em pouco tempo. Ajustou as velas do único mastro do barco e se dirigiu até timão para voltar para casa até que percebeu seu neto puxando suas roupas, pedindo atenção. Diga-me, vovô. O que aconteceu com Barca? O homem olhou para frente, triste e começou a falar. Após a derrota na segunda guerra, Barca tentou carreira política aqui em Cartago, porém, em um de seus decretos, determinou que a dívida de Cartago com Roma deveria ser paga com o dinheiro dos oligarcas e não com o dinheiro do povo. Os oligarcas não demoraram a fazer um apelo a Roma, já que ficavam cada vez mais pobres, enquanto que o povo ficava cada vez mais rico. Os romanos exigiram que Barca fosse entregue a eles em troca do perdão de alguns anos da dívida. Foi aí então que Barca decidiu exilar-se na Ásia... não temos notícias dele até então. O garoto abaixou a cabeça enquanto permanecia pensativo, até que enfim olhou novamente para o avô e perguntou. Vovô? Como sabe de todas essas histórias O homem parou, olhou para seu neto por um tempo, até que voltou sua atenção ao mar, estufou o peito com o semblante cheio de honra e pesar, por fim, respondeu. Eu lutei ao lado de Aníbal Barca na batalha que levou à nossa derrota na Segunda Guerra, onde fomos derrotados por Cipião e nosso líder, Asdrúbal, foi morto em combate. O próprio Barca me contou suas histórias na Itália enquanto aguardávamos o início da batalha aqui em Cartago. Lutei com todas as minhas forças para salvar minha terra, mas não conseguimos segurar as forças de Cipião e fomos derrotados, o reflexo de nosso fracasso é sentido ainda hoje... sempre confiei em nossa força, mas quando vi o poder romano frente a frente eu percebi com o que estávamos lidando... Após alguns momentos de silencio o homem falou Vamos fazer uma pausa, todas essas histórias do passado me deram fome, venha, vamos comer. Ainda levaremos um tempo para voltar às docas.
Os dois desceram para um compartimento na parte baixa do barco, sentaram-se em uma mesa improvisada e comeram um pedaço de pão e um copo de leite, cuja garrafa fora mergulhada no mar para deixá-lo mais gelado. Após comerem, Aníbal deitou-se para dormir e seu avô voltou para o deck, precisava correr para as docas, voltar a pescar, não poderiam voltar a Cartago de mãos vazias. Quando chegou à beira do barco para puxar as cordas das velas, notou que as ondas estavam ainda mais fortes, entranhou, já que naquela época do ano o mar sempre era calmo, principalmente àquela hora do dia. Não tardou para as ondas ficarem cada vez mais furiosas, o homem estava começando a ficar preocupado, conhecia aquele mar há muito tempo para saber que algo estranho estava acontecendo, a confirmação veio ao ouvir de longe o som de trombetas. Ao olhar para trás ele viu, no horizonte, uma grande frota se aproximando. Conhecia aquela bandeira, mesmo de tão longe, era Cipião! Cipião Africano, indo em direção a Cartago! A frota se aproximava em grande velocidade, ele sabia que não chegaria a tempo nas docas, também sabia que não adiantava recolher a bandeira de Cartago no mastro do navio, o soar das trombetas de guerra lhe diziam que já viram a bandeira. Sem saber o que fazer, ele desceu até os quartos do barco, verificou se Aníbal continuava dormindo, pegou uma espada velha que estava dentro de um barril e voltou ao deck. A frota já se aproximava, era assustador como se movimentavam rápido pelo mar. Era possível ouvir a madeira de seus navios gritando de dor contra as ondas, parecia que Baal Hammon tentava impedir que eles avançassem, mas Baal não é Deus dos mares, enquanto que os romanos tinham Netuno a seu lado. O barulho das ondas e o ranger dos navios faziam parecer que os dois deuses estavam batalhando para o bem de seus respectivos povos, mas certamente o Deus dos Mares ganharia essa disputa e colocaria os romanos das praias de Cartago.
Não havia para onde correr, não havia o que fazer. Ao longe, de Cartago, ele ouvir o soar dos sinos e das trombetas de batalha, o alerta havia ecoado pelo Mediterrâneo. O homem então, brandiu sua espada e gritou POR CARTAGO! POR BARCA E ASDRÚBAL! VENHA CIPIÃO!!! Seu brado era forte, seu peito quase explodiu, mas Netuno foi sagaz e tirou o peso do brado do homem ao fazer o barulho das ondas supera-lo. O navio de Cipião passou por ele, pôde ver o maldito homem ali, observando Cartago a distância, o demônio sequer olhou para ele e logo a embarcação seguiu em frente e ele ficou ali. Uma a uma, as embarcações romanas foram passando até que a última delas enfim seguiu as outras e dela um romano bradou Delenda est Carthago! Aquelas palavras ecoaram na cabeça do homem, Delenda est Carthago, Cartago deve ser Destruída! Aníbal correu para o deck e abraçou o avô, acordado pelo barulho da frota. O homem ajoelhou e olhou o neto nos olhos Tenha coragem Aníbal, devemos ser fortes! Seu espírito foi quebrado ao perceber que as costas de Aníbal estavam quentes e molhadas, olhou as mãos por cima dos ombros do garoto e viu sangue e uma flecha romana em suas costas. Desesperado, o homem segurou o neto nos braços, a pobre criança já se encontrava ao lado do Deus Baal, era tarde. O homem não teve muito tempo para luto, o Deus romano Marte agiu sobre os romanos daquele barco, dando a eles o dom da mira, uma flecha certeira pegou no peito do homem, precisa e fatal. Seu corpo cambaleou pelo navio, com o neto ainda nos braços, e caiu na água. Enquanto afundava, podia ouvir... Delenda est Carthago... Delenda est Carthago, podia jurar que a voz de Netuno cantava através das ondas, enquanto ele e seu neto eram engolidos pelo Mediterrâneo.