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Ás de Espadas
As memórias voltavam enquanto Javier deixava o seis de copas escorregar para dentro da manga. Já fizera o truque centenas de vezes, talvez mais vezes do que sacara um revólver. Mais vezes do que seria capaz de contar, definitivamente.
Quando puxava o ás de espadas para junto do ás de ouros, a mente já viajava para anos atrás. Aquele homem do outro lado da mesa era horrivelmente parecido com Bill, um falecido xerife que havia complicado um bocado sua vida.
Acabou, El Diablo! a voz de Bill ecoava entre seus ouvidos, seguida de um bangue seco. À direita, seu hermano Pablo caía. Seus olhos bem abertos, a boca nem tanto e a testa perfurada.
Javier, que àquela altura se entendia por El Diablo, quase puxou o gatilho na hora. Tolice. As doze balas dos revólveres estavam perdidas algumas caídas pelo mato, outras alojadas nos miolos de homens da lei.
Bangue. Carlos caiu à sua esquerda. O olho direito atingido pela bala do xerife, o esquerdo já não lá desde o incidente com o Lobo.
El Diablo sorriu. Sentia por seus hermanos e definitivamente lamentaria suas mortes mais tarde. Mas agora algo ocorria a ele e a chance não podia ser desperdiçada.
Conte suas balas, xerife a frase lhe escapou da boca. Doze tiros.
Quieto, latino! e puxou o gatilho. A fumaça continuou a sair do cano de seu revólver, mas o tiro falhou. Tentou novamente até o terror tomar conta de seu rosto.
Doze tiros. Aquele tipo de revólver, Javier sabia, jamais carregaria mais de seis balas cada um. Pablo havia sido o décimo primeiro. Carlos, o décimo segundo. E o décimo terceiro seria Bill.
El Diablo largou as armas no chão enquanto investia na direção do xerife.
Bill levou as mãos trêmulas ao cinto e pegou uma nova bala. Já havia enfiado a bala no tambor do revólver quando a sombra do pior bandido do oeste se projetou sobre ele.
O xerife ergueu o rosto e encarou seu pior inimigo. Seu rosto, moreno e coberto de cicatrizes, estava contra o seu e exibia a feição mais ameaçadora que Bill já vira na vida.
Bill chegou a puxar o cão da arma antes de morrer. O cano de seu revólver já se encostava ao peito de Javier e o dedo se preparava para espremer o gatilho. Sob o olhar frio de olhos castanhos, o xerife teve o coração perfurado pela faca de El Diablo.
El Diablo desejou ter algo poético a dizer ao xerife. Algo irônico, algo que o fizesse morrer se sentindo ainda mais derrotado mas nada lhe veio à mente. Sentiu-se aliviado e, ao mesmo tempo, encoleirado. Bill estava morto. A cidade era sua. Seu saque continuava rápido, impecável e mortal
Décadas mais tarde, num saloon fedido, um Javier bem mais velho jogava. Seu bigode, agora pontilhado de fios prateados, estava oculto atrás das cartas. O ás de espadas trespassava o ás de copas. Javier sentiu-se tolo por notar poesia e ironia naquilo e afastou o pensamento.
Mesa disse o homem ao seu lado, segurando as cartas perto do peito. O saloon fedia e ninguém apostava muito, mas era o lugar que ele conseguira. Ao fundo, o pianista tocava uma melodia agitada.
All in disse, empurrando as fichas para a mesa. Três homens jogaram as cartas, desistindo, e o americano à sua frente ficou no jogo. O sujeito albino cobria a cabeça quase careca com um chapéu escuro, mas as cicatrizes em seu rosto eram visíveis. Um bigode loiro e muito grosso escondia seus lábios, tornando-o difícil de ler. Jogou-lhe um olhar desconfiado enquanto empurrava suas próprias fichas.
Desça suas cartas, mexicano disse numa voz grave.
E Javier desceu as cartas. Na mesa, os quatro azes formaram a quadra e, no momento que percebeu o jogo, o homem rosado desceu as próprias cartas num soco. O barulho fez o pianista parar e observar junto com o resto do saloon.
Javier encarou o americano. O homem rosado estava em uma fúria silenciosa. Seus olhos muito azuis o encaravam enquanto uma veia estalava em sua testa.
Com a calma pela qual era conhecido, Javier juntou as fichas, coletou o dinheiro e se retirou do saloon. A última coisa que queria era ter problemas com alguém que se parecia com Bill. Afastou a lembrança, junto com muitas outras, enquanto apeava o cavalo em direção ao leste.
Pelo jeito ainda precisaria percorrer outro pedaço do deserto até deixar o oeste para trás. O oeste, suas memórias, os mortos que enterrara e o El Diablo que compartilhava a existência com Javier. Que assim fosse, então. Chegaria até o mar e o cruzaria, se fosse preciso.
E seguiu o poente.