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Fina Porcelana

Mistyrol

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06 de Agosto de 2015
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Imagem retirada do clipe "April Story" do grupo "April".

Fina Porcelana

          Todos os dias eram praticamente os mesmos. Já havia perdido a conta de quantas vezes eu o vi atravessar àquela porta, sempre carregando consigo uma velha valise, o mesmo olhar melancólico nos olhos e um doce aroma que exalava de suas roupas. Tudo funcionava como um ritual que jamais poderia ser quebrado.
          Assim que estivesse do lado de dentro da loja, ele virava a plaqueta da porta, dizendo que o negócio estava aberto. Logo em seguida, ascenderia as luzes e deixaria a sua valise atrás do balcão. Para todas as pessoas que passavam em frente à loja, eram apenas gestos comuns, ações de um homem ganhando a sua vida. Mas, para mim, era a rotina mais agradável que alguém poderia ter.
          Por mais que estivesse rodeado de várias outras como eu, não podia deixar de notar a solidão que aquele homem transmitia. Levava um sorriso automático pendurado em seu rosto, mas o seu coração estava partido em mil pedaços. Eu sempre analisava, de longe, todos os seus movimentos. Por mais que eu quisesse, não era capaz de colocar os meus sentimentos de lado, não conseguia deixar de pensar em como poderia ajudá-lo.
          Palavras de conforto despontavam de todos os lados, mas eu sabia que não era disso que ele precisava. Dia após dia eu pensava em perguntá-lo, de forma singela, tudo o que eu gostaria de saber. "Você está bem?". "Como se sente hoje?". "Você sentiu a minha falta?". Mas eu jamais conseguiria.
          Havia dias onde ele simplesmente sentava em sua cadeira e trabalhava, sem dizer uma palavra sequer. Os cabelos negros caíam sobre a testa, os olhos castanhos compenetrados, enquanto as suas mãos macias e delicadas sabiam exatamente o que estavam fazendo. Eu poderia observá-lo por horas, dias, até mesmo meses, se fosse preciso, mas eu jamais me cansaria de fazê-lo. Durante muito tempo, esses dias preciosos se repetiram, e eu os acompanhei com carinho, mas jamais imaginei que tudo mudaria de forma tão voraz.
          Em um dia que não me lembro mais, o sino da porta tocou, e aquilo só poderia significar uma coisa. Era uma cliente. Eu nunca me preocupei muito com as clientes que apareciam, normalmente eram apenas crianças ou senhoras com uma idade mais avançada. Não fazia diferença, apesar de sorrir gentilmente, ele só tinha olhos para o que elas traziam para ele. Mais trabalho. Poderia ser uma perna quebrada, um vestido rasgado ou um rosto com a maquiagem apagada por conta do tempo.
          Mas, dessa vez, não era uma senhora que aparecia, muito menos uma criança. Era uma jovem e bela mulher. Sobre o corpo esbelto, um vestido de renda branca muito parecido com o meu. Levava presa aos cabelos uma fita de seda azul, que contrastava com a pele clara e os lábios vermelhos. Por um momento eu cheguei a pensar que ela fosse uma de nós, mas alguma coisa nela me dizia que eu estava errada, só não saberia dizer o que era.
          Os dois conversaram brevemente, eu não pude ouvir o que eles diziam, mas sabia que era algo agradável, pois nunca havia visto ele sorrir daquela forma. Depois de alguns minutos conversando, ele se dirigiu até a estante onde eu estava e pegou uma das caixas, e depois levou até a mulher. Ela parecia feliz com o que havia recebido, tirou algum dinheiro de sua pequena bolsa e entregou a ele, logo em seguida deixou a loja.
          Em um primeiro momento, nunca imaginei que aquela cena seria o motivo dos meus pesadelos nas noites seguintes. Todas as noites antes de fechar, ele dava uma volta pela loja, com um pequeno espanador de pó feito de penas de alguma ave qualquer ele limpava as prateleiras. Tinham noites em que ele conversava conosco. Não eram assuntos muito importantes, e eu mesma só podia ouvir o que ele dizia quando estava bem próximo de mim, mas o doce som da sua voz era o suficiente para me fazer esperá-lo pacientemente no dia seguinte, dia após dia.
          Na mesma noite em que a bela mulher visitou a loja, ele sequer se importou em fazer a limpeza das prateleiras. Pegou a sua velha valise, virou a plaqueta da porta e atravessou a porta da loja logo após apagar as luzes. Aquela foi a primeira vez que eu pude perceber que tudo estava mudando.
          Outros dias seguiram, cada um diferente do outro. Não sabia mais o que iria acontecer, tudo o que eu havia conhecido sobre ele estava se desmoronando aos poucos, e as visitas da bela mulher eram cada vez mais frequentes. O homem solitário de olhar gentil se transformava, aos poucos, em um homem de olhar apaixonado e de coração remendado. Eu acreditei que podia esconder tudo o que sentia, mesmo que estivesse odiando-o de um lado, do outro eu não podia deixar de pensar em como ele ficaria daquele momento em diante.
          Mesmo assim, continuei fazendo o que sempre fiz. O observava, de longe, pensando se um dia ele seria capaz de ver tudo o que estava acontecendo, se eu seria capaz de contar para ele tudo o que sentia. Foram dias difíceis, mas nada que eu não pudesse aguentar. Acreditei nisso até o dia em que ele não apareceu na loja.
          Não conseguia pensar em outra coisa além de uma tragédia. Ele jamais deixou de ir até a sua loja, mesmo doente, sempre esteve presente. Aquele lugar era como sua segunda casa, não havia nada em sua vida que ele trocaria. Ao menos até o dia em que aquela mulher apareceu. Eu não podia chorar, não podia gritar e muito menos chamar por ele. Sentei-me e esperei pacientemente, aguardei até que ele voltasse, mas eu nunca imaginei que a espera duraria tanto tempo.
          Após uma semana sem que ele aparecesse, eu passei a acreditar que alguma coisa havia acontecido. Ele estava doente, havia sofrido um acidente ou qualquer coisa que o impedisse de nos visitar. Mas meu pensamento mudou depois que o segundo mês de espera havia passado. Aos poucos eu conseguia fazer o que eu sempre quis, conseguia esquecê-lo.
          Meus motivos para continuar ali, esperando, já não faziam mais sentido e não tinham mais importância. Estava eu, presa naquele lugar, as prateleiras empoeiradas e as caixas ao lado da minha já haviam perdido um pouco da cor por conta do sol. Resolvi que era a hora de dar um jeito em tudo, se eu não pudesse tê-lo, ninguém seria capaz de me ter em seu lugar.
          Eu sabia que seria difícil, mas tentei com tudo o que podia. A minha caixa estava muito próxima da borda da prateleira, eu estava no lugar mais alto. Não poderia sair de lá de dentro, mas eu não me importava. Impulsionei o meu corpo para frente e o bati contra a parede da caixa. Ela balançou um pouco, mas não foi o suficiente para fazê-la cair. Tentei mais uma vez, mas com toda a força que alguém como eu poderia ter. Não foi muito, mas foi o suficiente para rasgar o plástico da caixa onde eu estava, e para que o meu pequeno corpo despencasse da prateleira mais alta.
          Não sentia dor, ou talvez apenas não a percebesse, pois, nenhuma dor seria maior do que a dor que sentia em meu peito muito antes da queda. Apesar de meus esforços, nada havia mudado. Estava eu, jogada ao chão, olhando para o teto da antiga loja de bonecas, mas sem ter o que eu mais queria, sem poder ouvir o som do sino da porta tocar, sem sentir o doce aroma de suas roupas.
          A quantidade de poeira que se acumulou sobre mim era inimaginável. Depois do sétimo ano esperando, o teto da loja era a única imagem que a minha memória guardava. Mantive a mesma posição durante dez anos, desacreditada que alguma coisa mudaria. Porém, mais uma vez, tudo mudou sem que eu imaginasse.
          Durante uma tarde tranquila, como todas as outras, como todas as manhãs e nada diferente das noites que se passaram nos últimos dez anos, ouvi um som que jamais pensei que ouviria novamente. O sino da porta havia tocado. Naquele momento, não sabia o que fazer, estava agitada demais para pensar.
          Ouvi alguns passos, pela quantidade de diferentes sons, parecia ter ao menos três pessoas dentro da loja. Consegui identificar duas vozes. O tom doce de uma voz feminina, e um tom ainda mais delicado de uma voz masculina. Eu sabia que havia ouvido aquela voz em algum lugar antes, mas ela estava diferente, não era a mesma que pensei ter ouvido no passado.
          Pequenos passos se aproximavam de mim. Não podia me mexer, e a poeira sobre mim era tanta que me impedia de ver com clareza. Contudo, um pequeno rosto me observava de cima. Era um rosto sereno, os cabelos lisos e negros estavam caídos sobre os ombros. Era uma garotinha. Ela usava um pequeno vestido de renda branca, assim como o meu — que não estava mais tão branco — e uma fita vermelha no cabelo. Por um breve momento cheguei a cogitar a ideia de ela ser uma de nós, mas me lembrei de já ter cometido esse erro antes. Ela tinha uma feição delicada, tão doce e inocente quanto as feições que ele carregava em seu rosto, no passado.
          A garota que me observava se inclinou para frente e chamou por alguém. Ela dizia com sua voz aguda a palavra "pai" o tempo todo. Mais passos foram ouvidos, mas dessa vez eram passos firmes e fortes. Logo em seguida, consegui captar o rosto de um homem.
          Os cabelos negros com alguns fios grisalhos caíam sobre a testa. Os olhos castanhos me olhavam fixamente, a barba malfeita dava um ar mais velho para o seu rosto, mas eu jamais o confundiria. Senti suas mãos, apesar de não serem mais tão delicadas, ainda eram macias, e o doce aroma que exalava de suas roupas era o mesmo que sentia dez anos atrás. Era ele. Ele havia voltado.
          Se eu tivesse um, poderia jurar que os cacos do meu coração estavam sendo remendados, um por um. Ele me segurou em suas mãos e me virou para a terceira pessoa que estava na sala. Também não podia confundi-la. Era a bela mulher que fez tudo mudar. Apesar de um pouco mais grave, ele disse, com sua voz doce e gentil:
          — Como será que você veio parar aqui? — Ele olhava para mim. — Vocês não fazem ideia do quanto eu senti falta de vocês.
          As palavras dele ecoavam em meus pensamentos. Eu era apenas uma boneca, nós vivíamos em mundos diferentes e ele nos trocou por uma boneca do mundo real. Mas eu posso dizer, com toda certeza, que os dez anos que tive que esperar para estar novamente em seus braços valeram a pena. Pena que ele jamais poderá me ouvir dizer que o amo.​
 
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