Na madrugada do dia do sumiço da princesa
Silencioso era a palavra que mais se adequava ao castelo na madrugada anterior ao sumiço da princesa. Todos os moradores descansavam felizes e com suas barrigas cheias em suas camas emplumadas como qualquer outro nobre com posses sempre o fez. Foi justamente nesse momento que uma sombra apareceu rumando sorrateiramente para o quarto da princesa. Seu rosto, escondido por uma grossa capa escura de lã só poderia ser visto caso o bisbilhoteiro que quisesse descobrir sua identidade chegasse na distância de uma respiração. Em sua mão direita, segurava uma tocha que crepitava e largava cinzas a cada passo dado, mas esse não era o detalhe que despertava maior assombro, longe disso. Em sua mão esquerda, o jovem rapaz carregava uma bíblia cuja cruz em sua capa era cravejada de rubis do tamanho de azeitonas. Ao chegar diante do quarto da princesa, o mesmo batia com a mão que segurava o archote na porta e falava baixo, mas audível o bastante para quem já o esperava do outro lado da porta:
— Milady, estou aos... — Antes que terminasse de falar, a porta a sua frente se abria e uma linda e jovem mulher de cabelos negros e sorrisos fáceis o recepciona com um puxão em suas vestes e um beijo apaixonado que com certeza tirou o folego do padre. Ela o encarava com uma cara emburrada de quem estava irritada, mas o mesmo sabia que aquilo era apenas fingimento. Na sua frente estava a Princesa Hackless, ou melhor, Sophia para os mais próximos como ele. A garota o fitava com aqueles olhos extremamente azuis enquanto fazia o sinal de "dois" com os dedos. O jovem ria da garota enquanto colocava a tocha no suporte da parede e a bíblia numa bancada próxima da cama.
— O que eu fiz para merecer dois socos? — Disse o garoto que já sabia o que aquele sinal significava.
— O primeiro é por me fazer esperar! — e lançava o soco no braço do seu companheiro secreto que fingia ter sentido.
— E o segundo? — perguntava coçando o braço.
— É por que eu quero!
Não que ele já não estivesse acostumado. Foram criados juntos desde cedo, os dois, e desde criança tudo foi sempre do jeito que ela quis. Não importava se ela era princesa e ele um simples filho de ferreiro. Desde o dia que seus olhos se cruzaram no dia da cerimônia ao rei há mais tempo que ambos possam lembrar, os dois nutriam um amor mútuo que nada e ninguém pôde acabar. Com a ajuda dela, o jovem rapaz do povo estudou e se alfabetizou, podendo anos depois ascender socialmente ao sacerdócio, tudo para estar mais perto dela. Agora, é certo dizer que nada daquilo poderia ser possível se não fosse o assistente pessoal da Princesa Sofia, o velho e enrugado Godoh, um dos criados mais antigos e influentes do castelo que, percebendo o amor dos dois, moveu seus pauzinhos por debaixo dos panos para deixa-los tão próximos quanto alguém conseguiria deixar. Sofia puxa o acólito para sua cama e o empurra para os travesseiros de pena de ganso de sua suntuosa cama.
— Temos pouco tempo, que tal aproveitarmos? — dizia sentando no colo do seu companheiro, uma cara não tão pura assim estampava seu rosto naquele momento.
— Teremos todo o tempo do mundo minha princesa! — respondia com um beijo nos lábios da mulher irresistível que o provocava. — Jajá Godoh chegará e ele nos pegará numa posição bem constrangedora... — falava em tom sério.
— Deixe que nos veja, até parece que ele não sabe o que fazemos, ele mesmo que ajudou a nos unir. — no lugar da expressão anterior, a garota mostrava em suas expressões um misto de desaprovação e de desapontamento, algo bem difícil para o padre lidar.
Antes que ele conseguisse pensar em algo para responder, mais uma vez a porta do quarto era batida levemente, primeiro três vezes, depois duas, e uma vez, bem espaçadas entre si. Jonnah, o acólito, suspira aliviado por escapar daquela situação no mínimo complicada, mas antes de tirá-la calmamente de cima dele, o jovem não esqueceu de beija-la o mais apaixonadamente que ele conseguia, depois de tal feito, ele chegava próximo da orelha dela apenas para sussurrar:
— Depois de hoje estaremos livres, estamos planejando nossa fuga há anos. Quando estivermos seguros, não precisaremos nos segurar mais, aguarde só mais um pouco meu amor. — e se levantou para abrir a porta. Infelizmente, quando abriu, Jonnah percebeu seu erro. Quem o esperava na porta não era Godoh, o velho criado da família real, mas o próprio rei. Mal respirando devido ao susto, o garoto nem conseguiu disfarçar a surpresa, caindo de bunda no chão e rastejando para trás completamente perplexo. Sua voz não mais saia de sua boca nem para se lamentar ou pedir desculpas. Ele estava morto, e sabia disso. Imagina o que o Rei faria com o homem que deflorou sua única filha, a herdeira de todo o seu reino? Só de pensar já era um martírio. Ainda sim, as palavras que saíram da boca do rei foram todas, menos as esperadas pelo não mais tão acólito:
— Acalme-se rapaz, se você acha que poderia fazer algo dentro de meu castelo sem meu consentimento, você está completamente errado. Eu já sei que vocês se amam há muito tempo, o próprio Godoh me contou. Independente de quão antigo o criado seja, ninguém tem mais poder que o Rei. — Jonnah e Sophia se entreolharam, ambos sem entenderem o que estava acontecendo.
— Há muitos anos atrás, fui obrigado a casar com sua mãe, Sophia, sem eu nunca ter sequer a visto antes da cerimônia. Óbvio que depois dos anos de convivência, construímos uma relação de confiança e amor, mas a que custo? Havia uma camponesa que eu era apaixonado desde novo, e sabe o que seu avô fez ao descobrir que eu andei saindo escondido dela? Ele queimou toda a sua família acusando-os de bruxaria, deixando apenas ela viva. Envolta de grande sofrimento e de um ódio tremendo por toda a família real, tal moça tirou sua própria vida, no mesmo lugar que sua família foi cruelmente assassinada e exposta para todos da cidade ver. Então sim, mesmo que sejas minha única herdeira, preparei todo o plano para a sua fuga e hoje é o último dia que nos veremos, então, me abraça filha? — com lágrimas nos olhos, Sofia corria para os braços calorosos de seu pai enquanto soluçava o que devia ser "porque nunca me contou?" ou "como viveu com isso até hoje?". Por cima dos ombros dela, o olhar do rei perfurava o garoto como uma lança e suas palavras cortavam tanto como uma:
— Cuide bem da minha filha, mesmo ela sendo tudo o que eu tenho, confio-a a ti jovem Jonnah. Entraste em minha corte para eu ver do que você era capaz, se tinha alma de bom moço e isso eu sei que têm. A única coisa que peço aos dois é que voltem quando me derem um netinho. Jonnah será tido como herói por trazer a Princesa Sofia de volta ao seu lar e lhe darei a mão dela em casamento. É um bom plano, não acham? — mais uma vez Jonnah e Sophia se entreolharam, atônitos e admirados com a ideia do Rei.
— Agora vão! — falava o Rei. — Godoh os espera no portão leste da cidade, evitem lugares movimentados e rumem para o sul. Quando todos notarem que Sophia sumiu, eu convocarei os meus principais guerreiros e reinos vizinhos apenas para despistar a localização de vocês. Depois de duas semanas cessarei as buscas e vocês poderão viver calmamente na casa que preparei. Há uma boa terra já cultivada e suprimentos para pelo menos alguns meses. Vocês terão que colher o que a terra dar e plantar para a próxima estação, vez ou outra eu irei visitá-los. Agora vão! Godoh deve estar com frio de tanto esperar por vocês.
Antes de saírem, Rei Aethe abraça ambos e os deseja sorte. Estavam livres para viverem o amor que sentiam um pelo outro. No amanhecer daquele mesmo dia, a notícia correu igual a fogo em pólvora no castelo. A princesa, única herdeira do reino tinha sumido, mas ninguém nem ligou pro sumiço do jovem acólito. O Rei, visivelmente transtornado, convocou tudo e todos os que o obedeciam ou deviam favores e fez bem seu papel desviando-os da morada de sua filha. Como dito pelo próprio Rei, tempos depois das buscas terem falhado, o Rei dá a filha como morta e fazem um grande funeral para todo o reino. Alguns bons anos depois, o Rei Aethe que atualmente possuía mais cabelos grisalhos do que negros tanto em sua cabeça quanto em sua barba recebeu uma estupenda mensagem de um arfante mensageiro que bateu no salão do trono quase sem ar devido à sua corrida:
— Senhor, senhor, há uma jovem que diz ser sua falecida filha, ela vem com um jovenzinho que diz seu neto e um homem que fala ser seu protetor. — Naquele momento, em frente ao mensageiro, o Rei se fez de surpreso, mas foi só ele dar as costas com a mensagem para deixa-los entrar que o Aethe se permitiu dar um largo sorriso. Enfim, sua amada filha retornou ao seu lar.