Fadas
Ele cuspiu o cigarro e o amassou com um pisar rápido. Existia algo que estava perdendo, algo obvio. O homem na ruela se virou, atrás de si, a lua era bloqueada por uma densa cobertura de prédios e fumaça. O cheiro de ferro e piche fugia de uma poça de lixo até seu nariz. Mal conseguia ver o brilho dos aviões e helicópteros passando por sua cabeça e enchendo seu ouvido com uma melodia morta de engrenagens rodando. Ele tocou em um dos fios elétricos que caia por um dos postes da ruela. Estava frio, mas algo não estava certo.
Ele se virou novamente. Havia algo ali, escondido no canto de seu olho. Não sabia dizer o que era, mas podia sentir o bafo gelado da existência, murmurando maldiçoes em uma língua que já se foi. Mas ele não conseguia pegar o que era, sempre quando olhava para trás, a coisa desaparecia em um instante, como se nunca tivesse existido. Quem sabe nunca existiu, mas ele não ligava.
John apenas queria fugir, nada mais que isso. Tinha sido uma noite cansativa demais, estressante demais. Uma pessoa como ele não deveria ter de andar por tanto tempo, em uma noite tão feia como aquela. Mas ele não queria ir para casa.
Ainda não. Não com ela lá. Não sem terminar o que tem de fazer.
Ele preferiu continuar no seu caminho, mesmo que algo em sua mente mordesse sua cabeça e o obrigasse a pensar demais. Ele tirou seus óculos escuros e leu a mensagem na placa de neon verde do bar. Uma das letras piscava, assim como sua vontade de entrar. Ele hesitou por alguns minutos e decidiu prosseguir. Já estava ali, de qualquer forma.
John abriu a porta devagar, para não chamar atenções. Mas para sua surpresa, ou falta dela, não havia nenhum cliente a essas horas. Apenas um homem no bar, limpando as taças com um pano vetusto. Ele não desviou a atenção de seu trabalho enquanto o advogado entrou e se sentou. Estava sem paciência, John imaginava.
E de fato, aquele homem não estava esperando ninguém, principalmente passado as duas horas da noite, já ia fechar o bar e dar seu dia por completo, se não fosse a interferência de mais um. Porque há sempre mais um.
O que vai ser? repetiu o homem, tirando John de sua observação.
Hm. Pode
Pode ser qualquer coisa. Ele lançou a mão na carteira e jogou o pouco que tinha para o garçom, antes de cair a cabeça em suas mãos. Estava realmente cansado aquela noite.
Festa a fantasia? perguntou, rindo, sem tirar os olhos da abóbora jogada em um canto do bar, logo atrás de umas cadeiras. Era realmente grande, maior do que qualquer abóbora artificial que John já vira.
Já é aquele feriado? Ham? Ele tomou um gole do líquido roxo As coisas realmente passam rápido.
O garçom suspirou. Realmente não estava de bom humor.
Sabe. Eu lembro quando enchiam as ruas com essas coisas. Já faz muito tempo mesmo.
Ele se lembrava bem. Quando vivia na rua verde, número oitenta e um, todo dia, por mais ridículo que fosse o feriado, era sempre alguma razão para comemorar. As pessoas daquele bairro sempre tentavam encontrar algum motivo para poderem fugir de suas responsabilidades, mesmo que fosse o efêmero cheiro de abóbora assada e as fantasias mal feitas das crianças do quarterão. Eram tempos bons aqueles.
Você não faz ideia, Jonh disse o garçom, enquanto abaixava o copo.
Pessoas como você, da cidade grande, não conhecem. Mas quando chegava o início do outono, era quando a noite era mais
limpa. Com tudo lá fora, não dá para ver muito, se me entende.
As estrelas eram bonitas naquelas tardes. Eu ri tanto quando descobri a ironia daquilo. Era uma peça, uma brincadeira ruim de deus.
John tomou uma outra taça, enquanto tentava encontrar mais moedas em sua carteira. Ele parou por um minuto, quando uma ponta de curiosidade o atacou.
Era tão bonito como diziam?
O homem olhou para o advogado, e se sentou em uma cadeira, também com um gole de whiskey em mãos.
Eram maravilhosas. Isso é verdade. Não importa o quanto neguem.
Ele mostrou uma das mãos para John. Havia vários arranhados e cortes profundos, além dos buracos leprosos, provavelmente um carregador de corpos em algum momento da vida. Esses, nesses tempos, eram bem raros de se encontrar.
Vê isso daqui? Ele apertou o punho Foi o último presente que sobrou da minha cidade. Esses idiotas ricos que vivem por ai não conhecem nada desse mundo. Nadinha. Eu conheço tipos como você que dariam a vida para ver o que vi. E mesmo assim, não teriam a mínima coragem de pular para fora das casinhas que colonizam.
Isso não era certo, pensava John. Quando foi que a conversa tinha se tornado uma guerra de insultos. O que sequer tinha dito de errado? Mas mesmo assim, decidiu não se levantar e sair, como planejara a algum segundo. Fazia um bom tempo que alguém não o chamava de idiota, ele tinha saudades dessas discussões de bar.
Não parece tão impressionante assim disse ele, engolindo o sarcasmo da voz.
As criaturas que habitam nas abóboras, as fadas. Seres grotescos que são atraídos pela luz das estrelas, da lua e da chama. Na cidade grande não são vistas, mas onde os fios e os painéis de LED não encontram, bem no fundo do país, é possível encontrar coisas assim. Desde que descobriram que essas criaturas existem, as abóboras foram banidas.
São pequenas demais para ver, se escondem bem na luz, e podem formar enxames. Sem falar que o seu gosto por carne só é comparado ao de um abatedouro. Começam aos poucos, pelos dedos, depois os pés, os braços, as pernas, os olhos. Quando as pessoas começaram a morrer, e o caos se instalou, foi quando perceberam que a hora para comemorar havia acabado. O festival virou, anos depois, um dia de velar para os mortos.
Você não sabe a sorte que tem. Já faz anos, é verdade. Mas elas não morreram. Coisas ruins nunca morrem. Eu apenas espero que vocês não tenham de conhecer essas pragas. Ele suspirou Nós estávamos preparados. Eramos fortes. Conhecíamos uns aos outros. Por isso percebemos rápido. Já vocês...
Ele se levantou e fechou as prateleiras.
Não é uma boa noite para estar em um bar. Isso é bem desrespeitoso, mesmo para um advogado disse o garçom. Não estava realmente irritado, meio triste, inclusive.
É Halloween. É sempre uma boa noite para estar em um bar.
John voltou a olhar para a abóbora parada naquele canto. Era realmente uma boa noite. Uma ótima noite de Halloween.
Já marcaram a data.
O homem parou. Ele olhou para o copo que segurava.
Eu entendo.
Como você diz a alguém que a morte é a unica bebida que o espera?
Ele trancou a última prateleira e passou a mão pela madeira atra das mesas de seu bar.
Eu vou sentir saudades daqui, sabe, John? Até mesmo de bêbados como você.
Desculpe. Eu pensei em te dizer pessoalmente. Eu sei que prometi te ganhar mais um ano
.
Não se martirize. Ele tirou o copo da mão do advogado. Eu apenas quero que cuide daqui, e lembre-se bem.
Eu não soltei aquelas coisas, John.
Eu sei.
Eu não matei aquele homem, John. Alguém o fez. Algo. E essa coisa ainda está ai.
Eu acredito.
O advogado se levantou e o garçom pegou seu casaco. Ambos seguiram para a porta. John olhou para trás mais uma vez, tinha passado muito tempo ali. Mas agora não passava de um quarto sem cor.
Em seu ouvido, um chiado horrível e morto de engrenagens. Algo no canto de seu olho, que não conseguia bem identificar. Que não conseguia ver de fato, mas que estava ali. Sua presença sussurrava para ele, em uma linguá morta.
De fato, uma ótima noite de Halloween.