H i s t ó r i a s d e M e d i t e r r a
O Andarilho
O Andarilho
Em seu vigésimo sexto ciclo mais alguém arrancava suas raízes. Cansado do descontentamento pelas frustrações e humilhações, mais alguém se distanciava do conforto daquele que já não era mais o seu lugar. Carregado pelos ventos do acaso, desapareceu nas florestas, se tornando um andarilho de instintos fragilizados. Consumido pela necessidade.
Suportou dias. Sufocando a vontade de voltar. Estava tão distante a ponto de o retorno sequer ser uma opção. O delírio lhe fazia acreditar que a experiência surgiria inesperadamente, tornando-se um solitário caçador. No entanto, a cada noite a natureza selvagem sussurrava sons que invadiam sua mente debilitada.
As dores no corpo testavam os limites da sua resistência. Mesmo sem rumo, ele continuava. Não bastava sobreviver, pois em alguma coisa sua alma ainda acreditava.
A chuva diluía suas preocupações.
Recostado no vão de uma grande árvore, notava-se que seu corpo exalava o que parecia ser vapor.
Ele só tinha olhos para a correnteza perto dali. Pensou que poderia deitar de costas nela, deixando as águas o levarem para qualquer lugar. Mas não queria afundar, bastava ser levado para cada vez mais longe.
Os membros ignoravam seus comandos mentais, sua última chama parecia se apagar em meio a tanta chuva. Estava tudo bem. Ficar ali e de repente se unir com a própria árvore, sentindo-se vivo novamente.
Seu corpo se superaquecia involuntariamente com a sensação de estar queimando sob a pele. Olhos para o céu com as pálpebras cansadas, avistava relâmpagos dançando entre as nuvens e ouvia as trovadas se espalhando por toda a atmosfera local.
O olhar fixo presenciou um raio escapar em direção a árvore. O tronco flamejante caiu a poucos metros de si. Aquela chama ganhou sua atenção, por em plena tempestade continuar a queimar.
As mãos se movimentaram primeiro. Em seguida os braços. As pernas. Por fim os pés feridos. Calmamente o vagante se aproximou do tronco. O calor lhe confortava. Estendeu os braços na direção das chamas. As mãos sentiam a combustão ardendo-as até os ossos, sem despedaçá-las, ao contrário de seus trapos cujas extremidades queimavam ou se encolhiam perante aquela fonte de calor.
Ele aproximou-se ainda mais quando subitamente um novo raio despencou dos céus atingindo-o diretamente. Por alguns segundos pareceu se ajoelhar perante o tronco, antes do seu corpo desabar.
Mais tarde a tempestade cessou. A correnteza voltava a seu fluxo natural. Todo o ambiente ao redor rapidamente retornou ao seu estado regular, mesmo com sequelas inevitáveis.
Em algum momento, o tronco carbonizado fora arrastado para as margens do riacho, pedaços se desprenderam, no entanto, o seu cerne permanecia firme à terra, com aquele corpo inconsciente, repleto de queimaduras aparentemente superficiais, agarrado a ele.
Os primeiros raios de luz alcançaram a floresta que pouco a pouco consumia aquele corpo. Criaturas locais ignoravam-no. Insetos o atravessavam como um obstáculo comum. Sinais vitais presentes, mas talvez ele não quisesse mais acordar. De olhos ainda fechados, permaneceu imóvel mesmo quando ouviu passos suaves esmagando folhas e galhos.
A presença não lhe parecia hostil. Deixou-a tocá-lo sem demonstrar reação. Ela continuou, dessa vez sem evitar passar os dedos pelos ferimentos daquele homem que imediatamente reagiu com discreto desconforto. "Ele está vivo, precisa de ajuda!" Gritou a garota, com um tom sério, levantando-se em direção aos recipientes cheios de água deixados à margem do riacho. Em resposta, um barulho de sino ecoou. O homem caído se levantou devagar. A luz fez seus olhos arderem. Acompanhou a garota de baixa estatura, vencendo a vegetação com os braços até uma sinuosa estrada de terra surgir diante deles.
Havia um homem velho ao lado de um cavalo que carregava peças metálicas de diferentes formatos e tamanhos. Notava-se que uma de suas patas era feita de algum tipo de metal.
A garota arrastava uma caixa larga, relativamente rasa, onde havia depositado os recipientes de água selados. Pequenas rodas ajudavam a deslizá-la na superfície pedregosa.
Me chamo Hasgan. Interrompeu o constante silêncio durante a caminhada.
Sou Hatisui. Barden. Respondeu a garota, apontando para o cavalo e Hugo. Olhou para o velho.
Novamente ouviam-se apenas os seus passos e o leve tilintar do sino, a cada trote do cavalo.
Vários minutos se passaram sob o sol que não incomodava mais ninguém. Estavam cada vez mais próximos de uma cidadela murada, cujas fortificações mostravam sérios sinais de desgaste. Em seu interior haviam ruas sinuosas, estreitas em alguns pontos. Via-se estabelecimentos de diferentes especialidades por toda a parte dividindo espaço com residências.
Hugo e Hatisui conversaram com diferentes pessoas. Hasgan sentiu olhares sobre si e decidiu se afastar dali. O cavalo o acompanhou serenamente.
Circulando com suas roupas surradas, observava tudo ao seu redor, cada vez mais indiferente ao que pensassem dele. A barriga doía mais do que qualquer outra coisa.
Pouco depois voltou para onde o velho e a menina estavam. Não os encontrou no mesmo lugar, mas ele seria encontrado longe dali, encolhido na cela de uma prisão abandonada assim como o cavalo Barden, parado próximo às grades voltadas para a rua principal.
Fique com essas roupas, devem servir. Disse a menina, entregando vestimentas nas mãos de Hasgan.
Porque estão me ajudando?
Ouvimos falar sobre um desconhecido que vive nas florestas e que tem ajudado algumas pessoas.
...
Hasgan continuou a ouvi-la atentamente, comendo pedaços de pão e bebendo chá. Ela comentava sobre uma jovem sacerdotisa que foi transferida para outra cidade e pouco tempo depois surpreendida por indivíduos hostis durante uma meditação na floresta. Mas antes que o pior acontecesse, foi salva por alguém com os punhos flamejantes.
...e depois ela foi encontrada por aldeões nos arredores de Nancledra.
Nancle... dra. Hasgan balbuciou.
Vamos várias vezes para lá, é a maior cidade na região.
Venho de Columa, um vilarejo do leste.
É bem distante.
Não sei a quanto tempo estou vagando...
Hatisui se movimentou rumo a um baú, retirando dele largos papéis pardos e os apresentou a Hasgan. Ela explicou que
eram mapas de localidades próximas que estava desenvolvendo, além de desenhos com cálculos e especificidades de
peças e maquinários com os quais Hugo trabalhava.
Obrigado... pelo alimento e pelas roupas. Falou enquanto tateava os projetos artesanais da garota.
Era de um rapaz que nos ajudava.
E onde ele está?
Certo dia ele simplesmente desapareceu, deixando seus pertences para trás. Não demorou para descobrirmos que
havia se juntado com bandidos.
Semanas passaram depressa. Hasgan adquiriu noções de mecânica com Hugo, ajudando-o nas visitas periódicas a diversos clientes. O velho não falava. Um detalhe que dificultava negociações tal como explicações necessárias sobre problemas, reparos, novos mecanismos, mesmo assim conseguia se virar, mesmo sem a presença da sua ajudante.
Após um difícil trabalho em Nancledra, Hugo e Hasgan decidiram partir somente no dia seguinte. Barden, o cavalo, foi deixado num estábulo, com a gentileza de um cliente. Não longe dali a dupla se instalou numa pensão. O velho logo dormiu, mas o andarilho ainda enfrentava problemas para descansar à noite.
Andou pela cidade sem que nada lhe interessasse até avistar um homem preparado para incendiar um estabelecimento. Seus olhares se cruzaram, Hasgan manteve-se na mesma distância. Elevou um dos braços com a mão aberta na direção do indivíduo transtornado que segurava uma garrafa meio cheia e uma tocha. O fogo cresceu subitamente, assustando-o. O homem se jogou para dentro da loja a qual rapidamente foi consumida pelo fogo.
Hasgan correu para o estabelecimento, resgatando o homem ainda com vida. Instintivamente voltou para o local, lidando com as chamas o suficiente para facilitar a chegada dos locais com baldes de água.
"Além de louco é incendiário!"
"Como esse cara não se queimou?"
"Deveriam ter deixado ele preso!"
"Prendam os dois! Não sabemos quem começou!"
Os exaltados falavam sem parar.
O andarilho se sentiu acuado com tantos olhares e vozes direcionados a si. O corpo se aqueceu intensamente ao ponto de não conseguir mais conter as chamas que cobriam totalmente seus braços. Entre os presentes, estava Hugo, o único para quem olhou fixamente. Eles observaram a emanação daquele fogo na pele do vagante. As fagulhas nas roupas se soltavam no ar quando corria para longe dali.
Próximo de uma das saídas da cidade, um indivíduo misterioso, somente com os olhos a mostra, estendeu a mão impedindo sua passagem. Com a outra, apontou na direção do único templo da cidade, a poucos metros dali. Hasgan avistou uma mulher jovem os observando, parada em frente a uma grande porta dupla de madeira.
No dia seguinte, Hugo e Barden retornaram com a companhia de um mercador. E Hasgan despertou nas acomodações de um templo. O silêncio na alcova lhe agradava.
Espero que tenha conseguido descansar Disse a sacerdotisa.
Pensei que eles iriam me perseguir.
Não posso garantir que não vão.
Um homem baixinho adentrou o local. Carregava algumas vestimentas e acessórios dentro de um caixote.
Monja! Monja! A benção deu certo! Pela primeira vez tudo correu bem.
Fico contente por isso, Cédric. Entretanto, Bronstom sabe que não deve se acostumar. Não compactuo com as
atividades de vocês.
O monge anterior sempre nos ajudou.
O Sr. Ildegard não mais administra este templo, Cédric.
Hasgan observou o baixinho deixar o caixote perto do altar. E saiu resmungando pelo mesmo caminho de onde veio.
Dias se passaram sem se comunicar com Hatisui ou Hugo. Durante todo aquele tempo não saiu das dependências do local. Apenas ajudava a sacerdotisa Catarina com as sessões e rituais diários, e em troca recebia ensinamentos sobre a religião de culto à Luz.
Numa noite chuvosa, um homem alto e corpulento adentrou forçadamente o recinto. Deparou-se com Hasgan. Ambos se entreolharam. O silêncio seria quebrado alguns instantes mais tarde com a presença inesperada de Catarina.
O que faz aqui, Sr. Bronstom?
Soube que o Cédric se sentiu ameaçado quando trouxe os nossos pertences para serem abençoados.
Pensei que ele tivesse entendido o recado na última vez que aceitei realizar a benção.
Desde que o Ildegard saiu daqui você só fez uma única vez! E ainda jogou nossos pertences na rua!
Pare de gritar. Disse Hasgan.
QUEM é você?
Volte para seus aposentos Hasgan.
Tem certeza? Respondeu, sem parar de encarar aquele homem.
É esse cara aí que ameaçou o Cédric? Ele mencionou que você tem acobertado esse incendiário!
Vá embora, Sr. Bronstom.
Vocês não vão durar muito tempo aqui! Exclamou antes de desaparecer.
Quem é ele?
Não se envolva, Hasgan. É um pirata. Muito influente por aqui.
Ele assentiu com a cabeça.
Aquela situação não o agradava mesmo sendo melhor do que nada. Ás vezes pensava em fugir para a floresta novamente, no entanto aquele ambiente que o cercava lhe trazia alguma paz. Todos os pensamentos desenfreados haviam desaparecido. Inclusive aqueles acerca do seu próprio poder.
Pela primeira vez sentia genuína falta de Hatisui. As atividades com Hugo também lhe ocupavam de forma bastante satisfatória. Tudo parecia efêmero exceto seu próprio fogo.
Giorgio Bronstom e seu bando haviam abandonado por tempo indeterminado as garantias de proteção a maioria dos estabelecimentos da cidade, permitindo a incursão de gangues rivais. Por consequência, a criminalidade cresceu durante um tumultuado processo de transição política.
Mesmo com a expansão de luminárias mais modernas pela cidade, quase todos os residentes e viajantes evitavam aparecer nas ruas aos primeiros sinais da chegada da noite.
Catarina e Hasgan mantiveram-se alheios ao templo que recebia eventuais ameaças de criminosos. Mesmo com a presença do andarilho, a sacerdotisa não mais conseguia ocultar sua preocupação.
Eventualmente Cédric apareceria, dizendo que Bronstom e aliados partiram rumo a uma ilha de difícil acesso, onde supostamente haviam artefatos valiosos escondidos nas ruínas de um santuário.
A quanto tempo eles estão fora? Hasgan indagou.
Dezesseis dias! As provisões já devem ter acabado!
Pode ser uma armadilha, Catarina.
Se ele quisesse pegá-lo, já o teria feito! Respondeu Cédric.
Ok. E o que acha que podemos fazer em relação a isso?
O baixinho chamou a sacerdotisa para conversar reservadamente.
Eles precisam de você, Hasgan... Disse Catarina.
...
É isso mesmo. Estou recrutando alguns desgraçados para a viagem. Você seria uma boa ajuda.
Porque eu?
Não há mais em quem confiar aqui! Apesar disso, graças a mim ainda não invadiram esse lugar!
É verdade... Catarina olhou para Hasgan. Cédric conseguiu negociar com eles, mas a qualquer momento podem
mudar de ideia.
E você, como fica? Hasgan perguntou já saindo pela porta de entrada.
Se quiserem invadir, saquear, destruir que façam... esse lugar continuará sagrado e a ser guardado por mim.
A viagem para a ilha ao norte durou três longos dias. Avistaram o navio de Bronstom encalhado num rochedo.
Rapidamente os poucos piratas que ali estavam se acomodaram na embarcação de Cédric.
Disseram que Bronstom e os outros haviam se deslocado até a pequena ilha com as únicas barcaças inteiras que
possuíam, posteriormente avistadas na faixa de areia.
Apesar das circunstâncias, o debilitado capitão ainda acreditava que conseguiria levar os objetos encontrados nas
ruínas para as principais cidades mercantes de Kastan.
Chegou em boa hora! Venha dar uma olhada no que encontramos! Mas se achar algo de valor terá que passar pelas minhas mãos! Gritava Bronstom para Hasgan que tentava não se incomodar.
Hasgan admirou as ruínas e o céu que pairava sobre elas. A estrutura era grande, com entradas obstruídas, alguns pilares que ainda resistiam, uma praça central com uma enorme cratera, tomada pela vegetação a escorrer para dentro da abertura. Aproximou-se de um dos aposentos que cuja entrada estava tomada pela escuridão. Um silêncio amedrontador tomou conta dos seus ouvidos. Voltou-se para trás, mas seu corpo foi impelido no sentido contrário.
E não volte sem algum tesouro! Bronstom gritou.
O andarilho caiu no buraco ocultado pelo escuro. Não demorou para atingir o limite daquela área subterrânea. Algum tempo mais tarde, viu-se obrigado a produzir chamas com suas mãos para se localizar.
Havia uma escada vertical de madeira em bom estado do outro lado da sala subterrânea a qual deduziu que servia como acesso ao espaço secreto. No lado oposto, notou uma enorme fenda na parede. Instintivamente passou por ela, esforçando-se para atravessar aquele caminho apertado. Finalmente liberto, viu-se dentro da cratera presente na praça.
No meio de tanta vegetação, percebeu uma estranha formação de cristal que guardava um corpo adormecido. Mais de perto teve a certeza de que era uma mulher submersa em algo aparentemente fluido no interior do cristal envolto de raízes e plantas.
Com a chama em um dedo, tocou a formação que se desfez a sua frente. O corpo da mulher escorreu com o líquido para fora do cristal que lentamente se desintegrou.
Uma chuva começou a cair.
Naquele momento, Hasgan não queria estar em nenhum outro lugar.
[size=14pt]Continua...
. . .
Observação:
Esta é a primeira de três pequenas narrativas complementares.
Não é dos melhores textos que já escrevi, mas fiz o possível para contar brevemente uma das histórias ligadas ao universo do projeto em andamento "Outer Heart: Void's Whispers".
Agradeço a leitura de quem se interessou. No mais, peço desculpas em relação a possíveis erros no texto e se não formatei aqui corretamente, por falta de costume em fóruns.
Obrigado.