- Você ainda está pensando nisso?
- É que tinha tanta coisa pra ser vista.
- Que eles não viram...
- ISSO!
- E nem vão ver, você sabe disso.
- ...
- Eles não querem ver.
Debaixo de uma árvore solitária, a imensidão do azul brilhante da noite com topos de prédio iluminados ao fundo fazia parecer tudo um quadro monocromático.
- Por quê?
- Por que o quê?
- Eles não querem ver?
- Porque isso é direito deles, não? O erro foi seu desde o início. Antes do fim talvez você entenda.
- Eu achava que...
- Sim?
- Eu tinha tantas...
- Histórias pra contar? Pelo Amor de Deus... Você-NUNCA-teve algo pra contar.
A aura citadina estava distante demais para que alguém visse aquele olhar de espanto.
- Você tentou criar coisas boas pra outros, pensando sempre em como isso seria recebido, sempre ouvindo, procurando melhorar, procurando alcançar mais e mais pessoas sem nem se ouvir, e o que mais te irritava era perceber que a voz de dentro de você não ecoava na voz deles, não é? SEJA EGOÍSTA, SEJA EGOCÊNTRICO, senão você vai ficar o resto da vida sentado nesse fim de mundo escuro e frio esperando que alguém tire uma foto de longe e coloque sua sombra numa galeria de arte.
- Seu conselho não parece tão melhor que esse destino...
- Pois é a sua única saída.
Não era tão fim de mundo. Um ponto de vista exagerado, talvez? Até que a noite estava bonita.
- É, mas em algum lugar tá tendo baile e você não foi convidado, por isso sua noite é um fim de mundo sentado no chão com grama pinicando e formigas.
- Por que então perder tempo pensando em criar coisas que somente eu vou ver? Ser egoísta e ser egocêntrico é como criar um universo inteiro e depois trancar pra apodrecer sozinho.
- E alguém vai achá-lo.
- O quê?
- Alguém vai tropeçar no que você criou e tudo vai fazer sentido, seu universo sobreviverá em outros porque ele vive plenamente em você.
- Se você pudesse ser mais claro...
- Olha só... você, hoje, não passa de um deserto confuso, um vácuo caótico suspenso entre o que pode ou não dar certo e esse é seu maior erro, pra não dizer único. Você tem que ser seu único público para, um dia, ser o primeiro e ter outro. Num mundo de deuses imunes a críticas, pseudônimos coloridos e edições gráficas, qualquer popularidadezinha quebra as regras e ganha os holofotes, o resto não importa. Só é real o que tá dentro de cada um e ninguém vê. Você tem que aprender a fazer pra si.
- E depois?
- E depois o acaso é o melhor correio para levar sua mensagem a quem saberia ouvir. Livre do tempo e espaço, suas entregas são comicamente certeiras.
- Então, eu só preciso olhar mais pra mim?
- Não. Você não precisa olhar MAIS pra si, precisa olhar SÓ pra si. O restante se ajeita.
- Se você está certo, se eu ouvisse você, eu estaria errando seu próprio conselho, não?
- Não. Eu moro na sua cabeça, como sou você, estarei sempre na primeira fila para os maiores aplausos.
- Pensar que todo trabalho é plantar sementes de um bosque que nem vou ver florescer... faz tudo quase nem valer a pena.
- Você só precisa de si mesmo pra ser imortal, meu bem.
Silêncio... nem tanto... os sons de trânsito pareciam memórias de tão distantes.
- Promete?
- Prometo.
Agora era só uma árvore, a noite, a cidade e uma sombra anônima que andava para qualquer um dos lados.
Shiage