A família do pequeno Lars não via nada de concretamente errado nele. Soube ler antes de entrar na escola graças a sua prima, que adorava brincar de professora. O comportamento social dele não pôde ser julgado tão cedo não frequentou o jardim de infância antes de entrar no ensino fundamental. Quieto, mas genioso, ele parecia uma criança normal até ser forçado a conviver com outras crianças.
O garoto era tímido, não tinha noção de direção ou espaço, passava a maior parte do tempo dentro de sua cabeça. Aos sete anos, ele se perdeu. Era um dos primeiros dias de aula. A van da escola fez um caminho diferente, Lars sentiu que havia algo de errado, mas teve medo de dizer. O motorista havia passado de sua escola, levava as crianças para a outra. Sem querer decepcionar, ele desceu. Ficou na praça em frente a ela por um tempo. Ele se perdeu ali mesmo, pela segunda vez, em suas idéias. Toda a sua imaginação veio à tona ali. Nem mesmo percebeu a garoa que o molhava naquele dia cinzento.
Lars Klein se assustava com contos de fadas, mas não parava de pensar nas histórias folclóricas que pesquisava com afinco. Uma parte dele acreditava que eram reais, que tudo era possível. A outra parte desdenhava disso, como debochava de todo mundo, inclusive dos próprios sentimentos. Talvez por isso aquele dia tenha batido uma estaca em sua memória. Ali, em meio à névoa, ou quem sabe só em sua cabeça porque ele queria muito que isso acontecesse, no sentido em que nos tornamos obcecados por nossos medos ele viu uma pessoa, ou melhor, uma criatura deixando cair suas roupas humanas enquanto se aproximava. O ser era marrom, como um troll dos livros ilustrados. Não apenas as roupas se enrolavam nos pés dele, também algo parecido com pele humana, o rosto amassado na calçada. Os dedos longos e tortuosos como raízes de árvores, maiores que o tronco proporcionalmente curto. O rosto no formato bovino, olhos fundos, um manto negro envolto ao pescoço. Estendeu os braços sobre a cabeça de Lars e encaixou uma coroa de louros nela. Lars fechou os olhos, aflito, o corpo tremendo, espremendo o choro. Ele se sentiu totalmente coberto, as gotas não o tocavam, provavelmente fora o manto em cima dele. Quando saiu daquele transe, um adulto o tocou nos ombros e gritou. Após ser identificado pelos documentos, a polícia contatou a família e o devolveu.
Klein odiava o ambiente escolar, seus pais acreditavam ser um trauma depois do ocorrido. Perguntavam se os alunos caçoavam ou batiam nele na escola. Levaram-no ao psicólogo, um ano depois. O dr. James Ness teve dificuldades para estabelecer contatos com o garoto. Os pais contaram que ele devorava contos de fada. Ness gradativamente se aproximava dele com essa desculpa. As consultas eram espaçadas, a cada 3 meses. James via o garoto como sociofóbico e introvertido. Aos dez anos, desistiu das consultas. O progresso era pouco, o gasto parecia não compensar. Klein se fazia de ainda mais desinteressado apenas para que os pais economizassem com ele.
Enquanto o Lars crescia, mais as brigas do casal o perturbavam. Seus pais se divorciaram. O pai saia com ele aos fins de semana, a mãe pedia para que ele desse recado sobre tudo o que faltava em casa. Frequentemente, um reclamava do outro e a criança se culpava pelos conflitos.
Lars ia do ânimo irritadiço ao vazio. Esperto, sarcástico, agressivo e ao mesmo tempo sensível e talvez exatamente por ser sensível é que era cruel. Gostava especialmente de seu primo Faerber, cujos pais foram internados após um acidente de carro. Era um menino inteligente, calmo, agradável. Enquanto Faerber sonhava em ser médico, era estudioso e aplicado, Klein era relapso, sabia das matérias sem nunca estudar, desistia dos cursos que começava, sonhava em criar obras de arte grandiosas, o que era encarado como puro devaneio e preguiça. Lars costumava ouvir: Faerber sofreu muito e é um garoto normal, por que você, que sempre teve o que queria, não pode ser como ele?.
Dos onze aos treze anos, seu pai o chantageava em troca de afeto. Se você não conversar mais comigo, vou te levar ao psicólogo. E foi justamente nos treze anos de seu filho que ele resolveu o colocar de volta em tratamento. Mas por um motivo em especial.
Se Lars não estava no videogame ou computador, estava no quarto. Sentava no chão, no escuro, se enfiava embaixo da cama, às vezes lambia o chão. Ele também escrevia à mão, tanto a ponto delas doerem. A sua mãe era luterana mais por cultura, pouco cria em milagres ou coisas sobrenaturais, mas estava preocupada.
James Ness ainda exercia a profissão. Nas consultas, tentava novamente se aproximar do garoto com jogos de tabuleiro e desenho. O dr. era estrangeiro, de origem anglo-saxônica, fascinava-se pelos significados dos nomes e, naquele contexto, dos germânicos. Hmm, então Klein, seu sobrenome, quer dizer pequeno. E Lars, coroado com louros, acredito.
O garoto olhou para o dr. e exclamou: Sim!. Sentia-se um laço entre eles, ainda que obscuro e enigmático. Na consulta seguinte, três dias antes do aniversário de Lars, ele levou ao doutor seu caderno. Era escrito com letra de forma, no geral. Nos cantos, na vertical, com letra de mão. Cheio de desenhos incompletos intercalados ao texto e rabisco, mas nunca como rasuras, mais como desenhos simbólicos em espirais. O dr. leu o topo: A minha força secou-se como um caco e a língua se me pega ao paladar; tu me puseste no pó da morte. Notou que era algo dramático, guardou para ler depois. Continuou puxando conversa enquanto jogavam.
Dois dias depois, Lars Klein vestiu uma blusa de touca e fugiu de casa à noite, com a mochila cheia de coisas, antes de sua mãe voltar do trabalho. Horas depois, sua mãe acionou a polícia. Ligou para o pai da criança, eles discutiram, responsabilizaram um ao outro. Nada disso adiantou. Lars estava desaparecido, e assim ficou para sempre. Os pais de Faerber faleceram. A tia Klein obteve sua guarda dali em diante.
Sem saber de nada disso, o dr. James Ness lia o caderno de Lars. Algumas páginas estavam dobradas. Ele julgou que eram marcações. As letras eram bonitas, mas não havia muito sentido nas frases. Corpos por toda parte, sangue e mutilações eram citados diversas vezes, porém, não como visões, mais como idéias constantes. Ness suspeitou por um momento que, além de sociofobia, o garoto portava transtorno obsessivo-compulsivo relacionado a pensamentos violentos. Mas outra hipótese surgia ao vaguear entre as páginas e analisar os sintomas. Espanto causado por imagens mentais sexuais de ordem parafílica, por exemplo. Lars Klein também era obcecado com o significado de seu nome, vendo sinais por toda parte de seu destino especial, isolava-se de todos para manter a pureza necessária para o cumprimento disso. Preocupação excessiva com os pais, queria enriquecer cedo ou qualquer outra coisa que trouxesse paz para a família. DSM-V 301 F22, como um primeiro chute. O que ele não espera era até aonde o rapazinho levaria tudo isso, com as frases que o dr. marcou para contatar a família. Mas tarde demais.
Eu me encontrarei com a coisa novamente, onde fui tocado pela primeira vez e comemorarei meu aniversário de 14 anos com eles, sou escolhido por eles, sendo grande entre os pequenos ( ), porque eles são poucos, pobres e frágeis e precisam de mim lá ( ). Quando a troca for feita, minha família ficará bem, eles terão quem procuram e eu terei uma nova família, todos ficarão felizes.
O garoto era tímido, não tinha noção de direção ou espaço, passava a maior parte do tempo dentro de sua cabeça. Aos sete anos, ele se perdeu. Era um dos primeiros dias de aula. A van da escola fez um caminho diferente, Lars sentiu que havia algo de errado, mas teve medo de dizer. O motorista havia passado de sua escola, levava as crianças para a outra. Sem querer decepcionar, ele desceu. Ficou na praça em frente a ela por um tempo. Ele se perdeu ali mesmo, pela segunda vez, em suas idéias. Toda a sua imaginação veio à tona ali. Nem mesmo percebeu a garoa que o molhava naquele dia cinzento.
Lars Klein se assustava com contos de fadas, mas não parava de pensar nas histórias folclóricas que pesquisava com afinco. Uma parte dele acreditava que eram reais, que tudo era possível. A outra parte desdenhava disso, como debochava de todo mundo, inclusive dos próprios sentimentos. Talvez por isso aquele dia tenha batido uma estaca em sua memória. Ali, em meio à névoa, ou quem sabe só em sua cabeça porque ele queria muito que isso acontecesse, no sentido em que nos tornamos obcecados por nossos medos ele viu uma pessoa, ou melhor, uma criatura deixando cair suas roupas humanas enquanto se aproximava. O ser era marrom, como um troll dos livros ilustrados. Não apenas as roupas se enrolavam nos pés dele, também algo parecido com pele humana, o rosto amassado na calçada. Os dedos longos e tortuosos como raízes de árvores, maiores que o tronco proporcionalmente curto. O rosto no formato bovino, olhos fundos, um manto negro envolto ao pescoço. Estendeu os braços sobre a cabeça de Lars e encaixou uma coroa de louros nela. Lars fechou os olhos, aflito, o corpo tremendo, espremendo o choro. Ele se sentiu totalmente coberto, as gotas não o tocavam, provavelmente fora o manto em cima dele. Quando saiu daquele transe, um adulto o tocou nos ombros e gritou. Após ser identificado pelos documentos, a polícia contatou a família e o devolveu.
Klein odiava o ambiente escolar, seus pais acreditavam ser um trauma depois do ocorrido. Perguntavam se os alunos caçoavam ou batiam nele na escola. Levaram-no ao psicólogo, um ano depois. O dr. James Ness teve dificuldades para estabelecer contatos com o garoto. Os pais contaram que ele devorava contos de fada. Ness gradativamente se aproximava dele com essa desculpa. As consultas eram espaçadas, a cada 3 meses. James via o garoto como sociofóbico e introvertido. Aos dez anos, desistiu das consultas. O progresso era pouco, o gasto parecia não compensar. Klein se fazia de ainda mais desinteressado apenas para que os pais economizassem com ele.
Enquanto o Lars crescia, mais as brigas do casal o perturbavam. Seus pais se divorciaram. O pai saia com ele aos fins de semana, a mãe pedia para que ele desse recado sobre tudo o que faltava em casa. Frequentemente, um reclamava do outro e a criança se culpava pelos conflitos.
Lars ia do ânimo irritadiço ao vazio. Esperto, sarcástico, agressivo e ao mesmo tempo sensível e talvez exatamente por ser sensível é que era cruel. Gostava especialmente de seu primo Faerber, cujos pais foram internados após um acidente de carro. Era um menino inteligente, calmo, agradável. Enquanto Faerber sonhava em ser médico, era estudioso e aplicado, Klein era relapso, sabia das matérias sem nunca estudar, desistia dos cursos que começava, sonhava em criar obras de arte grandiosas, o que era encarado como puro devaneio e preguiça. Lars costumava ouvir: Faerber sofreu muito e é um garoto normal, por que você, que sempre teve o que queria, não pode ser como ele?.
Dos onze aos treze anos, seu pai o chantageava em troca de afeto. Se você não conversar mais comigo, vou te levar ao psicólogo. E foi justamente nos treze anos de seu filho que ele resolveu o colocar de volta em tratamento. Mas por um motivo em especial.
Se Lars não estava no videogame ou computador, estava no quarto. Sentava no chão, no escuro, se enfiava embaixo da cama, às vezes lambia o chão. Ele também escrevia à mão, tanto a ponto delas doerem. A sua mãe era luterana mais por cultura, pouco cria em milagres ou coisas sobrenaturais, mas estava preocupada.
James Ness ainda exercia a profissão. Nas consultas, tentava novamente se aproximar do garoto com jogos de tabuleiro e desenho. O dr. era estrangeiro, de origem anglo-saxônica, fascinava-se pelos significados dos nomes e, naquele contexto, dos germânicos. Hmm, então Klein, seu sobrenome, quer dizer pequeno. E Lars, coroado com louros, acredito.
O garoto olhou para o dr. e exclamou: Sim!. Sentia-se um laço entre eles, ainda que obscuro e enigmático. Na consulta seguinte, três dias antes do aniversário de Lars, ele levou ao doutor seu caderno. Era escrito com letra de forma, no geral. Nos cantos, na vertical, com letra de mão. Cheio de desenhos incompletos intercalados ao texto e rabisco, mas nunca como rasuras, mais como desenhos simbólicos em espirais. O dr. leu o topo: A minha força secou-se como um caco e a língua se me pega ao paladar; tu me puseste no pó da morte. Notou que era algo dramático, guardou para ler depois. Continuou puxando conversa enquanto jogavam.
Dois dias depois, Lars Klein vestiu uma blusa de touca e fugiu de casa à noite, com a mochila cheia de coisas, antes de sua mãe voltar do trabalho. Horas depois, sua mãe acionou a polícia. Ligou para o pai da criança, eles discutiram, responsabilizaram um ao outro. Nada disso adiantou. Lars estava desaparecido, e assim ficou para sempre. Os pais de Faerber faleceram. A tia Klein obteve sua guarda dali em diante.
Sem saber de nada disso, o dr. James Ness lia o caderno de Lars. Algumas páginas estavam dobradas. Ele julgou que eram marcações. As letras eram bonitas, mas não havia muito sentido nas frases. Corpos por toda parte, sangue e mutilações eram citados diversas vezes, porém, não como visões, mais como idéias constantes. Ness suspeitou por um momento que, além de sociofobia, o garoto portava transtorno obsessivo-compulsivo relacionado a pensamentos violentos. Mas outra hipótese surgia ao vaguear entre as páginas e analisar os sintomas. Espanto causado por imagens mentais sexuais de ordem parafílica, por exemplo. Lars Klein também era obcecado com o significado de seu nome, vendo sinais por toda parte de seu destino especial, isolava-se de todos para manter a pureza necessária para o cumprimento disso. Preocupação excessiva com os pais, queria enriquecer cedo ou qualquer outra coisa que trouxesse paz para a família. DSM-V 301 F22, como um primeiro chute. O que ele não espera era até aonde o rapazinho levaria tudo isso, com as frases que o dr. marcou para contatar a família. Mas tarde demais.
Eu me encontrarei com a coisa novamente, onde fui tocado pela primeira vez e comemorarei meu aniversário de 14 anos com eles, sou escolhido por eles, sendo grande entre os pequenos ( ), porque eles são poucos, pobres e frágeis e precisam de mim lá ( ). Quando a troca for feita, minha família ficará bem, eles terão quem procuram e eu terei uma nova família, todos ficarão felizes.