Olá pessoal, resolvi postar o primeiro capitulo de um livro na qual eu estava escrevendo, mas abandonei a muito tempo por falta de motivação, sem contar que eu nunca mostrei a ninguém. Então dias atras, encontrei ele e resolvei postar aqui, para ver se alguém lê ou acha interessante, quem sabe eu volto a ter alguma motivação para continuar escrevendo.
Parte I
O velho, a assassina e a criança.
O velho, a assassina e a criança.
DORIAN
O sol já estava se recolhendo entre as nuvens, quando o velho camponês bocejava o cansaço de um dia inteiro de trabalho. Assentiu com o braço o chicote que conduzia o animal e o trote seguiu. Sentiu-se satisfeito pela sacada inteira de trigo que batucava o fundo do carro-de-boi. Coçou a barba em dois momentos. No primeiro, pensando na cerveja e na companhia de seu amigo Gules. Que não só bebia mais que ele, mas também devorava os pratos de sua esposa, como um lobo na hora da caça.
O segundo momento, era sobre a partilha do trabalho, e sua pouca vontade em se dirigir até as terras do seu senhorio arando mais campos e bajulando nobres, que faziam pouco juízo do seu vigor, e debochavam da sua condição com olhares vazios e palavras sem afeto, desprezando seu trabalho. Mas o que lhe fazia apertar e puxar em toques nervosos os pelos brancos em seu queixo, era principalmente a dificuldade em manter em pé seus joelhos fracos, que rangiam feito a madeira do próprio carro-de-boi. Tinha receio de não aguentar mais e cair diante dos repolhos, e do ritmo suplicante dos olhos do nobre observador, que não só fiscalizava a qualidade das suas tarefas, mas também fazia chegar aos ouvidos do seu senhorio, a sua serventia e utilidade. Estava velho e sem filhos, e, portanto não havia ninguém que pudesse substitui-lo, temia pelo futuro da esposa, diante da sua morte. Poderia se tornar um servo-morto?
Pensou. Mas pelo menos tinha boa comida para o inverno.
Tudo graças a sua esposa, e do como ela costumava escolher bem devagar os cereais de qualidade, que sobravam da colheita. Media cada um, fitando o cheiro e a textura, até terminar em um belo pão cinza, e por vezes até mesmo branco. Nesses dias seus poucos dentes saboreavam o prazer de uma companheira dedicada, que o amava e um banquete farto. Tinha certeza das suas escolhas e de como era um homem apaixonado. Lembra-se dela, fazia seu coração feliz e acreditar no próprio tempo. Preenchendo assim a paisagem em cores claras e vivas, deixando para traz o cinza do sofrimento.
O vento sorriu. E nesse sorriso viu os pinheiros que contornavam a estrada dançarem e comemorarem sua vida. Contudo, o sorriso de um deles foi triste.
E dessa tristeza vários pássaros esvoaçaram rapidamente. Parecia um raio. Um barulho foi ouvido. O cavalo segurou o trote e assustou o homem. O silencio tomou o lugar do vento, e nem mesmo o bater de assas de uma borboleta era percebido. Seus olhos cor-de-vinho, agora eram de um gato, que atento à situação observava cada folha, e se preparava para atacar.
Ladrões? Pensou baixinho. Tratou de buscar o machadinho entre o trigo. Pegou entre os dedos, rapidamente sem precisão. Quase deixou cair.
Segurou com tanta força, que podia até mesmo estrangular o próprio medo que batia no peito. Seus trapos sujos, agora eram lavados pelo suor do seu corpo.
Mas sua velhice o impedia de ter coragem, não pelos cabelos brancos em formato de redemoinhos, mas pelo tempo que passou sem nunca ter acertado um homem com uma arma. Tinha medo de lutar e de alguma forma aquilo o paralisava.
Naquele dia, o sol sempre o fazia companhia, tinha trabalhado duro, colhendo cada grão, cultivando a dureza da vida em suas mãos. Tudo isso parecia lhe dar um sinal.
Podiam roubar seu trigo? Indagou o próprio medo. Apesar de velho era persistente, e pensar que um moribundo qualquer podia lhe tirar o fruto do seu esforço o deixava com raiva, e um desgosto profundo pela vida. Cultivar as sementes, preparar a terra, e no solo soltar a aiveca, e ver diante da troca de sois, a vitalidade da natureza se desenvolver. Fazia dele um deus, que se orgulhava da sua cria. Não era qualquer um que podia tocar nela. Diante dessa sensação apertou ainda mais o machadinho. Frangiu o rosto, e assustou o seu medo. Pensou na esposa, e até mesmo na morte.
Era um ataque.
Mas nada aconteceu, e dessa vez o silencio era de calmaria.
Afrouxou os dedos, e abaixou o machado. Mas continuou olhando para aquele pinheiro, e dessa vez viu um algo diferente.
Havia um homem no chão. Parecia estar dormindo, ou mesmo morto. Suas vestes negras estavam molhadas, ou tão úmidas, quanto à língua de uma vaca. Quem sabe o que tinha acontecido? Podia ser mesmo um ladrão, ou então um cavaleiro, quem sabe um mendigo. Não percebeu nenhuma arma, nem espada, foice ou qualquer ferramenta. Seu rosto era comum, mas estranhamente intimo para ele. Havia muita barba que se misturava com o capim rasteiro.
Hey... Hey! Resolveu chamar o homem. Falando baixando, como se alguém o estive escutando. Normalmente não se intrometia nesse tipo de coisa. Forasteiros estranhos na maioria das vezes eram sempre problemas. Deveria seguir seu caminho para casa.
Contudo. Alguma coisa estranha lhe chamava atenção, não sabia explicar exatamente o motivo, mas sabia que deveria pelo menos ver se ele estava bem, já que não respondia, ou demostrava qualquer ação.
Saltou do carro-de-boi e com o machadinho resolveu se aproximar com passos curtos e sorrateiros, prensando seus dedos a arma até chegar finalmente no corpo.
Respirou por alguns segundos e voltou a olhar para aquele homem. Que estava estirado, como se tivesse levado uma pancada. Cheirava mal, que o nauseou por alguns instantes. Percebeu que não estava encharcado com água, pois o liquido em suas vestes era mais opaco e parecia de gordura de algum animal. Então finalmente entendeu o porquê daquela estranha intimidade em sua feição. Seus lábios apenas dançaram as palavras, mas nem um som saiu daquela boca.
Irmão!
[size=12pt]Não podia acreditar no que estava vendo. Havia mais de vinte primaveras, que não tinha noticias suas. A cicatriz da égua rechonchuda ainda estava lá. O rosto tinha mudado pouco, embora envelhecido pelas marcas do tempo. Estava tão sujo quanto os porcos mais sórdidos do seu senhorio. Mas nada disso importava, queria apenas respostas para suas perguntas que brotavam na sua mente, como uma colheita na primavera. Afinal de contas o que havia acontecido? Por que apareceu assim tão subitamente? Por que fugiu? Eram tantos por quês, que sua velhice se tornou tão nova como uma criança que crescia e descobria o próprio mundo. Por que afinal?
BATOS... BATOS, o que aconteceu? Gritou em tom de desespero, enquanto tentava acorda-lo.
Vamos irmão, levanta! Repetiu essas palavras a exaustão.
Puxou as mãos, os pés, o cabelo, e por fim com alguma raiva deu alguns pontapés. Mas o homem continuava tão imóvel quanto às pedras ao seu lado. Pelo menos ainda respirava e, portanto estava vivo, isso o deixou aliviado.
Suas vestes o intrigavam. Estava todo em couro preto, apertado em um cinto, com uma ponta em aço.
Roupas de combate! Foi à primeira coisa que pensou, pois só um guerreiro parte de alguma nobreza, normalmente abastecido com um tecido caro, e bem talhado, poderia se vestir com um couro daquela qualidade. O que podia se lembrar, era que a peça fazia parte de algum vestuário de batalha.
Mas...? Pensou.
Torceu a sobrancelha. Suas lembranças o levaram a fazer uma cara feia, afinal seu irmão nunca tivera qualquer vocação para o combate, não conseguia nem mesmo manejar as ferramentas de trabalho, sem se ferir. Além disso, nunca teve qualquer treinamento, e muito menos podia pagar por isso. Seu comportamento era desajeitado, caia nas fezes, escoria na urina, era bem atrapalhado. Seus vizinhos na época o apelidaram de gracejo. Pois fazia as moças sorrirem.
Tudo isso só o deixava ainda mais curioso, sobre o tempo que esteve desaparecido.
Mas suas duvidas não importava naquele momento. Estava todo ardendo em febre e tinha que tira-lo desse lugar o mais rápido possível e leva-lo até sua casa, onde junto a sua esposa poderia providenciar os cuidados necessários. Não poderia perdê-lo novamente.
Tentou levanta-lo, mas viu que não teria forças e por isso foi arrastando seus pés até o carro-de-boi. Onde com muito esforço e persistência, conseguiu coloca-lo sobre o trigo. Trotou a animal e disparou o chicote como uma flecha em direção a sua casa.
Seguiu sem hesitar. Ouviu-se apenas o balançar das rodas, e o giro nas pedras da estrada carcomida. Seus olhos seguiam entre o chicote estendido e seu irmão. Que continuava com a mesma expressão, mas às vezes parecia torcer o rosto, entre aflição e seriedade. Não entendia aquilo, mas sentia no fundo sabia que ele precisava de ajuda, ele sempre precisava.
Passou pelos Roy, e percebeu a abundancia da plantação. Apesar disso, os dois gados que se esgueiravam perto de um pequeno riacho estavam magros. E a madeira da cerca estava podre. Nem eles podiam ter tudo, pensou. Viu um pequeno celeiro, que parecia estar abandonado, contrastando com uma montanha em verde claro, que gritava as cores de um belo verão. Tratou de atiçar o chicote e fazer o cavalo aumentar o trote, por que a estrada que contornava o lugar sofria um entrave das arvores e pedras que tinham caído na chuva anterior. O morro ficava cada vez mais íngreme, e isso só fazia o cavalo bater as patas nas pedras e desacelerar. Se em dias chuvosos e lamacentos podia demorar até mesmo horas para subir o lugar, agora em um dia brilhante e azul, o carro-de-boi pesava pela urgência, e pelas respostas da situação. Dessa vez duvidas podiam ter o mesmo peso que pedras.
Só queria avistar sua casa, chegar logo, tinha medo do que poderia acontecer com seu irmão. Afinal já tinha o perdido uma vez, onde tratou de enterra-lo nas palavras do esquecimento. No começo, não acreditava quando ele sumiu. Dizia para si que o devasso atrapalhado às vezes se remendava com alguma moça e desaparecia, não ligava, na verdade. As bebidas, as confusões e o seu jeito engraçado e petulante só o irritava. Nunca foram muito próximos, apesar de irmãos tinham comportamentos muito diferentes. Quando o galo cantava, já vestia as próprias calças, e estava pronto para o arado, enquanto seu irmão cultivava o próprio sono. Dormia feito um bebezinho nas tetas de uma mulher. Tinha sono pesado e por isso não importava o lugar, nem mesmo nas fezes de um boi. Quando levantava travava de roubar alguns ovos de uma galinha, e sumia. Podia vendê-los, ou come-los se não tivesse bebida.
Nunca se interessou pelo campo, nem mesmo desejava em ter terras. Isso o aborrecia. Nunca gostou de servir e nos barres fazia piadas e deboche dos senhorios, o que por muitas vezes lhe dava alguns ossos quebrados por algum soldado. Era resistente a ordens e vivia onde as palavras não importavam. Não tinha medo. Como um diamante tomava toda atenção para si. Tinha um belo sorriso com todos os dentes, o que atraia a atenção das moças. Mas apesar disso, não enveredava com nenhuma, para a tristeza de vosso pai, que jamais jurou na frente de um secular qualquer coisa, na maioria das vezes só acabava magoando as moças depois de desvirgina-las. Nisso era bastante perverso e gabava-se aos amigos.
Quando sumiu, ninguém entendeu. Mas essa certeza só começou a surgir depois de algum tempo. Apesar das confusões e dos romances pequenos, sempre aparecia. Ou pedindo ajuda, ou se escondendo de alguma coisa. Mas ele sempre voltava para casa. Naquele dia, tanto o sol como a lua estavam no mesmo lugar, não havia nada de diferente e ele tinha saído para pescar. Disse alguma coisa para sua esposa, mas a memoria da velhice não o ajudava a lembrar. Galos cantavam, e nem mesmo seu sono tão presente aparecia. No começo aquilo lhe dava certa satisfação em se ver livre daquele traste que dormia e comia e nada ajudava, parecia tão bom. Nunca aceitou o fato de um sujeito como ele, viver encostado em suas paredes. Por ordem era dono de metade da casa, dos bois, galinhas e da plantação, pois foi assim que vosso pai disse antes de partir. Sua única irmã havia casado antes de qualquer coisa, e sumido no mundo, portanto eram os últimos homens que restavam e senhores de tudo o que haviam conseguido.
Nunca mais tiveram noticias. Ninguém viu. Ninguém ouviu nada. Ninguém.
Era um silencio estrondoso que ficou cada vez mais alto na medida em que o tempo passava. Procurou em todos os lugares, sentia-se em parte responsável. Mas nunca encontrou nada. Depois de algum tempo tratou de esquecer. Embora seu duro trabalho e as gargalhadas da esposa e dos amigos o afastassem das lembranças. Não podia negar que no fundo a situação o entristeceu. No final das contas sempre acreditou que o jovem devasso algum dia encontraria seu caminho.
Mas isso nunca aconteceu.
Agora seu caminho era a estrada que chegava a sua casa. Finalmente estava lá. O cavalo segurou o trote e parou por alguns instantes. Observou a pequena casa de madeira que se estendida sobre o campo. Havia um pequeno jardim e um lago que contornava a decadente cerca de madeira em volta dos pinheiros. Onde a plantação salpicada de verduras quase estava crescendo. Das cordas que se estendiam em volta das arvores, as roupas pulavam ao vento. Sua esposa tratava de deixa-las não cair na lama que se alongava sobre as pedras no chão, de modo que a dança dos tecidos fosse contida por suas mãos enrugadas, mas bastante habilidosas. Seu cabelo branco não maior que um palmo do ombro, dançava na ventania em sincronia com o seu vestido longo e fechado. Parecia que todas as roupas e fios queriam sair dali. De repente uma peça conseguiu se soltar, e sua túnica de sono caiu, de modo que a lama manchou suas mangas. Visitaria novamente as aguas cristalinas do lago.
Notou o marido se aproximando, mas dessa vez o sorriso de um belo dia de trabalho dava lugar a um semblante preocupado e impaciente.
Esperou o carro-de-boi se aproximar e tratou logo de indagar o que viu.
O que foi? Perguntou ela ao esposo.
Tratou de descer imediatamente do carro-de-boi desconsiderando sua idade e sua pergunta e com a urgência chamou pela esposa.
Vem cá, olha só.
O quê? ... O que é isso?
Me ajuda a levar ele para dentro. Não vai acreditar. Pega ali. apontando os dedos.
Por quê?... O que aconteceu? Questionou ao marido.
Primeiro vamos colocar ele na palha. Está ardendo em febre. Então conto a você. Vamos.
Ela hesitou quando sentiu o forte odor do corpo, e por alguns segundos seu estomago gritou. Pensou por alguns instantes tentando entender a situação, mas decidiu não questionar mais sua ordem, pegou pelos pés úmidos e gordurosos, enquanto o marido tentava empurra-lo, escorregando em cima do trigo. Com bastante esforço, foram conduzindo o corpo do homem, até encontrar o colchão de palha e lá deita-lo.
Quem é? Perguntou ela agora de modo impaciente.
Meu... Irmão Falou o esposo enquanto tomava um pouco de ar.
Seu irmão! Olhou em tom de surpresa Aquele que, um dia sumiu?
Sim, ele mesmo! Tá bem diferente, né!
Ela fixou o homem na palha em todos os sentidos, mas sua memoria não conseguia visualizar nada em comum que o marido dizia. Se fosse ele, estava muito diferente, e nem mesmo lembrada pelas palavras conseguia notar qualquer semelhança com o homem deitado no colchão com seu cunhado, que tanto aprontava e costumeiramente a ajudava com as roupas e as galinhas.
Homem, tem certeza que ele esta vivo? Está cheirando muito mal Falou enquanto cobria o nariz. O esposo não parecia se incomodar tanto quanto ela.
Está vivo... Respirando Falou de modo impositivo enquanto apontava para o peito que realizava o movimento.
É, mas o que aconteceu com ele, onde ele apareceu... Assim agora?
O encontrei nos pinheiros perto da estrada de pedra, quando terminei de semear e armazenava o trigo. Estava voltando.
De repete assim...? Como um rato quando sai da toca?
Sim! Não vi como ele se aproximou, apenas escutei um estrondo, tão forte quanto os raios da noite.
Homem, mas ele não falou nada para tu?
Não, eu o encontrei assim.
Você viu se ele está machucado?
Não sei, mas percebi que está ardendo em febre de chama.
Ela tocou o topo da testa do sujeito, e sentiu o fogo flamejante da febre instaurada.
Nossa esse homem vai morrer! comentou aflita.
Essas palavras o deixaram nervoso. Em situações de pânico se sentia perdido e assustado.
Sua esposa percebendo o estado do marido deixou de se importar com o odor ruim e logo tratou de assumir uma postura ativa e foi buscar um pequeno pedaço de tecido onde o molhou em um balde com a agua das roupas encharcadas. Colocou sobre a testa circundando as sobrancelhas do homem. Para então, pegar uma pequena vasilha de barro, e com a agua das roupas levar até a boca do pobre homem. Quando abriu ela com os dedos, sentiu um ar quente saindo de dentro da sua garganta, como se estivesse queimando. Hesitou por alguns instantes, achou estranho, mas logo tratou de despejar a agua.
O velho, apenas observava a cena de uma forma intimista, enquanto sua esposa media esforços para ajuda-lo. Antes que o marido pudesse divagar em seus pensamentos, ordenou.
Me ajude tirar as suas vestes, vai diminuir sua febre, anda.
O velho hesitou um pouquinho, mas quando viu sua esposa agindo de forma ativa sentiu-se mais confiante também. Pegou nos sapatos pretos e gordurosos e tentou puxar. Enquanto ela tentava tirar a túnica e desbotar o cinto. Mas a gordura entremeada ao couro lhe fez pensar.
O cheiro ruim vem disso aqui? O que é? Falou, enquanto apertava os próprios dedos, tentando sentir a textura da gordura.
Pode ser porco, ou mesmo resto de carne de servo-morto apodrecida. Respondeu o esposo soltando os dedos do sapato também.
Homem, porco não cheira assim, servo-morto Como você sabe?
O cheiro é parecido, já que o senhorio utiliza os restos daqueles que são descartáveis como germinadores em algumas plantações.
É verdade isso? Perguntou a esposa aparentemente surpresa.
São nobres, eles podem fazer isso, têm direitos tanto pelo corpo quanto da terra.
Ela apenas assentiu e cabeça e concordou, dando-se conta do seu lugar enquanto uma simples camponesa. Um silêncio tomou o lugar de alguns segundos, que foi cortado novamente por uma nova duvida.
Couro preto, o que ele é? Um guerreiro? Disse fitando os olhos do esposo.
Não sei, mas é muito estranho, cê já imaginou ele assim?
Não! Quem sabe o que aconteceu depois que sumiu, era muito avesso.
Coisa boa parece que não foi.
É que nem o cão que perde os dentes, e não volta a come. Respondeu em referencia a um ditado popular.
O couro estava quente e até ardia nos seus dedos. Não era fácil puxar. Parecia estar remendado com sua pele.
Está apertado, não sai.
Ai!
Faz força. Disse ela.
Viu que não conseguia tirar a túnica. Ergueu as mãos do homem e pediu ao esposo para ajuda-la. Ambos se esforçaram, e na terceira vez, viram algo além do couro escuro.
O coração de cada um apertou no peito.
[size=12pt]Sua pele estava toda queimada. E em algumas partes havia carne viva. Muito sangue. Bolhas e um cheiro de pus chamuscado. A disposição dos cortes faziam palavras, símbolos ou coisas estranhas. Não entendia e muito menos sabia ler. Mas parecia horrível e macabro.
Oh!
Oh! Oh!
No momento nem parecia acreditar. Achou tudo muito incomum e estranho para sua vida simples e cotidiana. Ficaram muito assustados e com o choque se afastaram imediatamente. Para logo observa-lo com mais cuidado e atenção, com um pouco menos de medo.
Horrível... Horrível! Disse ela, enquanto ouvia seu estomago embrulhar.
Ele nada respondeu, mas continuou a olha-lo com toda a atenção do mundo.
Vem cá Disse ela.
Pegue o pano lá. Vamos cobri-lo.
O velho andou até o fim da casa, colocou as mãos dentro de uma caixa de madeira ao lado de duas pedras. Puxou fazendo força e viu algumas ferramentas de trabalho também. Foices e uma pá, bem velha por sinal. Tirou um pano maior, e bem mais sujo que o anterior. Trouxe rapidamente aos dedos da sua esposa. E cobriram o torso do homem.
Ver seu irmão naquela situação, o fez lembrar atônito da angustia do passado em que ele sumiu. Sentiu medo.
Irmão acorda. Acorda Disse o velho. Tentando aumentar a voz em tom de desespero.
Ele não vai levantar. Deixa disso homem Falou tentando abafar a tristeza nos olhos do esposo.
Quê... Tem que levantar. Não quero perde-lo.
Cê precisa se acalmar, temos que ver se a febre vai baixar, fica sossegado. Lembra da Varcosa? - Disse enquanto tocava os ombros do seu esposo.
Que tem?
A gente não curou ela? Estava bem sofrida, nas ultimas, mas ficou boa.
Sim, lembro.
Gostava bastante daquela vaca, pena que se foi.
É, mas a febre a gente deu conta.
E do maldito lobo também, não se esqueça.
Claro que não. Nesse dia você até parecia um guerreiro. Tava bem forte e corajoso.
Sorriu ao mesmo tempo em que sentiu a provocação da esposa, mas preferiu não contraria-la, pois sabia que não era um grande caçador. Arar o campo e semear os trigos, fazer da terra sua obra de arte era sua maior paixão.
Sentou na porta da casa, e pensou alguns minutos enquanto coçava a barba. Os cachorros tentavam se aproximar do seu irmão, e um gato na janela olhava a situação com bastante atenção. Os cães colocavam o focinho, sentindo o cheiro ruim de quase morte e logo depois se afastavam rapidamente, enrocando as próprias patas. Sabiam que dali nada sairia de bom.
Passaram-se algumas horas, e a grama começava a ficar um pouco mais úmida. Degustava o frescor que o tabaco queimado, colhido a três metros do próprio campo, o trazia. Sua esposa não gostava muito do cheiro, mas nunca implicava e sabia que isso o deixava mais tranquilo. Puxou um pouco mais á fundo a garganta, o que o fez tossir.
Dividia seu olhar entre a mulher colhendo algumas plantas e puxando a terra. Levantado algumas pequenas raízes, e seu irmão.
Guarde o cavalo, deixa de ficar preocupado. Vou fazer um chá-de-noite. Disse tentando tira-lo dos pensamentos dispersivos.
Tá
Levantou cansado, com bastante esforço. Mas logo conduziu o animal até o pequeno estabulo, ao fundo da casa. Alguns cachorros os seguiram. Tomou um pouco de agua que havia na caixa. Tirou à parelha e desamarrou o couro que a prendia. O cavalo sentiu-se mais aliviado. Pegou algumas palhas e jogou sobre as fezes que encrustavam o chão.
Coçou a barba.
Aquelas imagens macabras ainda estavam em sua mente. Havia algo nelas. Todas essas coisas lutavam entre seu medo e a curiosidade. O que tinha acontecido? Passou-se tanto tempo, e isso também o assustava, mas naquele momento era como se o tempo não tivesse passado. Tudo parecia presente. Era como se seu irmão nunca tivesse sumido. Havia o encontrado na manhã seguinte. Desse jeito, isso mesmo Desse jeito?
O que um homem faz para ser castigado assim? Falou baixinho, como se estivesse conversando com o cavalo.
Algo muito ruim, muito ruim Respondeu para si, tentando imaginar algum castigo tenebroso.
Seculares furiosos, punições de senhorios, jovens bem acompanhadas, criaturas. Havia tanta coisa nesse mundo que podia feri-lo. Em um lugar onde além das colinas havia um grande desconhecido. Mas não sabia, pois nunca tinha saído dali. Todo o conhecimento que possuía não passava de lendas e cochichos. Palavras e mais palavras. Embora assustadoras, não bastavam para fazer aquilo com um homem.
Sentiu-se pequeno, e mais pequeno ainda por ser um velho camponês, que passou tanto tempo da sua vida no mesmo lugar. O que ele viu? O que fez? Amou muitas mulheres? Conheceu muitas montanhas? Havia inveja em suas duvidas. Se por um lado isso o assustava, por outro o deixava ainda mais animado. Contudo havia sua esposa, sua vida. Tudo o que construiu e fez durante todo esse tempo. Isso também tinha muito valor. Talvez até mais que o próprio ouro. Deu-se por satisfeito e no final das contas era ele quem estava de pé.
Quando voltou a casa, viu a esposa umedecendo outro tecido, em um balde ao lado da cama.
Como ele tá?
Melhor... Um pouco melhor. Acho que a febre abaixou um pouco.
Queria levantar o trapo que cobria o dorso e ver aqueles símbolos macabros, sua curiosidade parecia mais forte que o nojo.
Ajuda aqui! Disse a esposa, pegando um punhado de musgo batido e pegajoso, que formava uma pasta cinza-avermelhada.
Abre.
Abriu os dedos, e ela colocou uma parte daquilo. Um pouco escorreu no chão e a outra parte grudou na palma da mão. Cheirava muito mal, e estava levemente aquecido.
Sua esposa logo levantou o trapo que cobria o dorso. Viu algumas moscas saindo, e junto o cheiro ruim de carne assada. Pegou com os dois dedos indicadores, na mão do esposo um pouco daquilo e passou fazendo um movimento circular sobre os ferimentos. Agora o velho podia observar melhor a cena.
Havia um circulo no peito. Que se estendia do topo até quase o umbigo. No centro havia alguma coisa escrita. Talvez alguns números. Não podia identificar. E em volta das costelas buracos triangulares ou mesmo em formato irregular, que se estendiam da base até o fundo das costas. Suas veias pretas contornavam o sangue seco nas bordas. E centenas de bolhas de vários diâmetros, com pus ou já abertas se estendiam por todo o corpo. Apesar disso sua pele ainda estava muito quente, era como se estivesse queimando por dentro. Seu rosto era bastante ruborizado, exceto pela ausência de machucados ou ferimentos. Tudo parava até o começo do pescoço, onde parecia mais limpo e um pouco mais saudável.
Pobre homem - Disse ela.
É Respondeu abaixando a cabeça, olhando a degradante situação.
Dessa vez as esperanças do velho começaram a diminuir. Já podia vislumbrar que a morte era o único caminho do seu irmão. E mesmo que ficasse curado, provavelmente teria o mesmo fim da Varcosa, invalida e inútil.
Sua esposa entrelaçou seus dedos.
Vamos refletir. Pedir ajuda.
Assentiu com a cabeça, frisando um tom serio e triste.
Nunca foi um homem religioso, mas também não se sentia um báculo, Acreditava na vontade e prosperidade que o Grande Devon trazia. Procurava por vez alguns seculares para consultar seus ensinamentos. Tinha um oculto desejo de ser condido no grande Templo vermelho. Coisa que sua pobre fortuna não permitia, e por isso se contentava com a pequena caixa de madeira ao fundo da casa.
Fecharam os olhos, colocaram a mão no peito. E de joelhos cantaram baixinho o cântico de rivação.
A vontade suprema seja feita.
Por todos os nomes
Devon, Devon, Devon
Seja sangue do meu sangue
Carne da minha carne
Pelo teu corpo, peço ao meu
Que cure todas as feridas, todos os desejos
Devon, Devon, Devon
Sentou-se em um banquinho talhado bastante pensativo. Sua esposa trouxe uma caneca de chá-de-noite. O fogo fisgava e chamuscava junto ao vento das frestas. Estrelas teciam o céu, e a noite aparentava estar assustadoramente magnifica, convidando, todos os tipos de mosquitos e insetos saírem para brinda-la.
Cê sabe o que vai fazer quando ele morrer ? Quer conte-lo? Perguntou a esposa, enquanto bebia um pouco do chá em sua caneca. Sendo direta.
Não sei, talvez?
Cê sabe que temos poucas moedas, os bois ainda estão magros e daqui a um pouco chega o inverno. Homem, acho melhor não.
Mas olha tudo que ele passou, merece sofrer assim?
Não... Não. Claro que não homem, ninguém merece. Nem o cão mais ardido.
É.
Mas a gente precisa pensar em nós... Eu e tu. Tem poucas moedas. Tem certeza que é teu irmão? Indagou ao esposo, de forma direta e assertiva.
Sim, tenho. Notei na primeira vez que eu o vi. Não me esqueceria daquele rosto. Respondeu com toda certeza que achava.
Mas cê tem que reconhecer que ele está muito diferente. Vai que é alguém parecido. Faz vinte anos, homem. Como tu podes afirmar assim.
Mas eu sei Apontou os dedos diretamente a testa do sujeito.
Olha lá, tá vendo aquela cicatriz.
Sim! Cê me contou uma vez, é do chute que ele levou?
É. De uma égua bastante caprichosa. Tentou fazer gracinhas e se montar e por isso acabou levando. Quase morreu.
Quanto tempo faz?
Não sei. Ainda era pequeno. Faz muito tempo. Depois disso ele ficou diferente. Do jeito que a gente lembra.
E por isso, tu tem certeza que é ele.
Um pouco... Mas não só isso.
O que mais então, homem.
Não sei explicar... Acho que se ele precisasse de mim. Viria atrás de mim.
Mas cê não gostava dele, sempre me dizia isso. Queria ele fora daqui.
Mas não gostava mesmo. Mas é irmão. Sangue do meu sangue. Quando vosso pai morreu, ele ainda era um menino, e a Anette já tinha casado e saído. Eu fiquei responsável.
Ele cresceu desse jeito feito cão, por que eu não fiz nada para domina-lo.
Mas tu não é o pai dele.
Não... Não sou. Mas podia ser diferente.
Muita coisa na vida pode ser diferente, mas não é.
É. Diferente dele, eu sempre quis ficar por aqui e crescer.
Sim. É da terra que tu gosta. Sempre foi um homem trabalhador.
É... Desde que vosso Pai me ensinou a semear a terra. Sempre fui... Talvez...
Talvez o que?
Nada.
Não sei o que passa contigo, mas tu estás com alguma duvida caminhando na cabeça?
Podia ter saído.
Saído para onde?
Viver lá fora... Quem sabe...
Para com isso, homem. Tu resolveu ficar aqui comigo, crescer na terra do teu pai. Tem boa comida, um teto para deitar, animais para engordar. O mundo lá fora nunca foi contigo.
Sim, é verdade.
O que faz falta para tu, sempre foi um filho.
É
Nesse momento os olhos de ambos se cruzaram, mantendo uma estranha quietude, embora sobre a superfície uma silêncio gritante criava uma tensão.
Tu sabe que depois que perdi o primeiro, nunca mais. Tu sabe...
Sim... sei.
Tu nunca procurou outra mulher?
Não... Não. Eu queria contigo. Nunca me deitei com outra.
Nunca mesmo.Cê tem certeza?
Sim.
Ficaram alguns minutos com a expressão perdida, como se houvesse alguma coisa de muito delicado nessas palavras. Parecia atingir algo muito profundo dentro dos dois.
Levantou-se e repetiu mais uma vez o chá-da-noite que estava bem saboroso. Assentiu a esposa.
Muito bom.
Ela sorriu.
Obrigada, coloquei pequenas raízes de bodó. Deixam mais saboroso. Respondeu.
Lambeu a ponta dos lábios. E por um segundo se olharam diferente. Havia alguma coisa ar.
Os contornos das pernas da sua esposa começaram a ganhar forma. E seus peitos caídos e flácidos agora pareciam como de uma jovem moça, embora escondidos sobre a túnica pesada. Aproximou e bem devagarinho e começou a acaricia-la. Ela tomou de bom tom o carinho e deixou a caneca ao lado. Colocou sua mão entre as pernas do velho e começou a beija-lo.
Enquanto os gatos enveredavam pelo campo, caçando presas. O amor dava lugar há um dia cansativo e dispendioso. Línguas se encontravam. E cabelos brancos se enrolavam diante do desejo ardente. Penetrava e ela gritava em um ritmo jovial. Fazia bastante tempo, e quem sabe tinham esquecido o próprio ato. Mas embora a pele fosse enrugada, flácida e cansada, o amor continuava jovem o bastante. Sentiam o próprio êxtase da primeira vez em que se conheceram.
Ela caiu deitada e cansada sobre o próprio corpo. E ele sobre o dela. Olharam-se. E riam como duas crianças. Saboreando o sorriso um do outro.
Por um momento deixaram de acreditar no ato, pois fazia muito tempo que não acontecia. Enquanto velhos, pensavam que o deleite do sexo, fosse apenas para os jovens. Mas nesse momento não importava, pois o calor dela aquecia o seu. Apertou seus dedos, delicadamente, sugerindo um carinho.
Permaneceram ali por algum tempo. Agarrados um ao outro, perdidos em si. Esquecendo completamente o homem no colchão. Quando subitamente se levantou.
Vou ver como ele está.
Tá Respondeu ela, com palavras sonolentas e cansadas.
Ouviu os passos recogitando novamente para si. Olhou para ela completamente assustado e perdido.
Ele fugiu!
Como? Respondeu ela agora também em choque.
Ela levantou rapidamente onde apenas um pano acinzentado cobria o corpo. Foram até o colchão do homem.
Havia muito sangue espalhado sobre o lugar. Um muco preto e esverdeado impregnava a palha e o chão. Os panos avermelhados estavam jogados sobre a madeira da janela.
Um estranho vento soprava.
O segundo momento, era sobre a partilha do trabalho, e sua pouca vontade em se dirigir até as terras do seu senhorio arando mais campos e bajulando nobres, que faziam pouco juízo do seu vigor, e debochavam da sua condição com olhares vazios e palavras sem afeto, desprezando seu trabalho. Mas o que lhe fazia apertar e puxar em toques nervosos os pelos brancos em seu queixo, era principalmente a dificuldade em manter em pé seus joelhos fracos, que rangiam feito a madeira do próprio carro-de-boi. Tinha receio de não aguentar mais e cair diante dos repolhos, e do ritmo suplicante dos olhos do nobre observador, que não só fiscalizava a qualidade das suas tarefas, mas também fazia chegar aos ouvidos do seu senhorio, a sua serventia e utilidade. Estava velho e sem filhos, e, portanto não havia ninguém que pudesse substitui-lo, temia pelo futuro da esposa, diante da sua morte. Poderia se tornar um servo-morto?
Pensou. Mas pelo menos tinha boa comida para o inverno.
Tudo graças a sua esposa, e do como ela costumava escolher bem devagar os cereais de qualidade, que sobravam da colheita. Media cada um, fitando o cheiro e a textura, até terminar em um belo pão cinza, e por vezes até mesmo branco. Nesses dias seus poucos dentes saboreavam o prazer de uma companheira dedicada, que o amava e um banquete farto. Tinha certeza das suas escolhas e de como era um homem apaixonado. Lembra-se dela, fazia seu coração feliz e acreditar no próprio tempo. Preenchendo assim a paisagem em cores claras e vivas, deixando para traz o cinza do sofrimento.
O vento sorriu. E nesse sorriso viu os pinheiros que contornavam a estrada dançarem e comemorarem sua vida. Contudo, o sorriso de um deles foi triste.
E dessa tristeza vários pássaros esvoaçaram rapidamente. Parecia um raio. Um barulho foi ouvido. O cavalo segurou o trote e assustou o homem. O silencio tomou o lugar do vento, e nem mesmo o bater de assas de uma borboleta era percebido. Seus olhos cor-de-vinho, agora eram de um gato, que atento à situação observava cada folha, e se preparava para atacar.
Ladrões? Pensou baixinho. Tratou de buscar o machadinho entre o trigo. Pegou entre os dedos, rapidamente sem precisão. Quase deixou cair.
Segurou com tanta força, que podia até mesmo estrangular o próprio medo que batia no peito. Seus trapos sujos, agora eram lavados pelo suor do seu corpo.
Mas sua velhice o impedia de ter coragem, não pelos cabelos brancos em formato de redemoinhos, mas pelo tempo que passou sem nunca ter acertado um homem com uma arma. Tinha medo de lutar e de alguma forma aquilo o paralisava.
Naquele dia, o sol sempre o fazia companhia, tinha trabalhado duro, colhendo cada grão, cultivando a dureza da vida em suas mãos. Tudo isso parecia lhe dar um sinal.
Podiam roubar seu trigo? Indagou o próprio medo. Apesar de velho era persistente, e pensar que um moribundo qualquer podia lhe tirar o fruto do seu esforço o deixava com raiva, e um desgosto profundo pela vida. Cultivar as sementes, preparar a terra, e no solo soltar a aiveca, e ver diante da troca de sois, a vitalidade da natureza se desenvolver. Fazia dele um deus, que se orgulhava da sua cria. Não era qualquer um que podia tocar nela. Diante dessa sensação apertou ainda mais o machadinho. Frangiu o rosto, e assustou o seu medo. Pensou na esposa, e até mesmo na morte.
Era um ataque.
Mas nada aconteceu, e dessa vez o silencio era de calmaria.
Afrouxou os dedos, e abaixou o machado. Mas continuou olhando para aquele pinheiro, e dessa vez viu um algo diferente.
Havia um homem no chão. Parecia estar dormindo, ou mesmo morto. Suas vestes negras estavam molhadas, ou tão úmidas, quanto à língua de uma vaca. Quem sabe o que tinha acontecido? Podia ser mesmo um ladrão, ou então um cavaleiro, quem sabe um mendigo. Não percebeu nenhuma arma, nem espada, foice ou qualquer ferramenta. Seu rosto era comum, mas estranhamente intimo para ele. Havia muita barba que se misturava com o capim rasteiro.
Hey... Hey! Resolveu chamar o homem. Falando baixando, como se alguém o estive escutando. Normalmente não se intrometia nesse tipo de coisa. Forasteiros estranhos na maioria das vezes eram sempre problemas. Deveria seguir seu caminho para casa.
Contudo. Alguma coisa estranha lhe chamava atenção, não sabia explicar exatamente o motivo, mas sabia que deveria pelo menos ver se ele estava bem, já que não respondia, ou demostrava qualquer ação.
Saltou do carro-de-boi e com o machadinho resolveu se aproximar com passos curtos e sorrateiros, prensando seus dedos a arma até chegar finalmente no corpo.
Respirou por alguns segundos e voltou a olhar para aquele homem. Que estava estirado, como se tivesse levado uma pancada. Cheirava mal, que o nauseou por alguns instantes. Percebeu que não estava encharcado com água, pois o liquido em suas vestes era mais opaco e parecia de gordura de algum animal. Então finalmente entendeu o porquê daquela estranha intimidade em sua feição. Seus lábios apenas dançaram as palavras, mas nem um som saiu daquela boca.
Irmão!
[size=12pt]Não podia acreditar no que estava vendo. Havia mais de vinte primaveras, que não tinha noticias suas. A cicatriz da égua rechonchuda ainda estava lá. O rosto tinha mudado pouco, embora envelhecido pelas marcas do tempo. Estava tão sujo quanto os porcos mais sórdidos do seu senhorio. Mas nada disso importava, queria apenas respostas para suas perguntas que brotavam na sua mente, como uma colheita na primavera. Afinal de contas o que havia acontecido? Por que apareceu assim tão subitamente? Por que fugiu? Eram tantos por quês, que sua velhice se tornou tão nova como uma criança que crescia e descobria o próprio mundo. Por que afinal?
BATOS... BATOS, o que aconteceu? Gritou em tom de desespero, enquanto tentava acorda-lo.
Vamos irmão, levanta! Repetiu essas palavras a exaustão.
Puxou as mãos, os pés, o cabelo, e por fim com alguma raiva deu alguns pontapés. Mas o homem continuava tão imóvel quanto às pedras ao seu lado. Pelo menos ainda respirava e, portanto estava vivo, isso o deixou aliviado.
Suas vestes o intrigavam. Estava todo em couro preto, apertado em um cinto, com uma ponta em aço.
Roupas de combate! Foi à primeira coisa que pensou, pois só um guerreiro parte de alguma nobreza, normalmente abastecido com um tecido caro, e bem talhado, poderia se vestir com um couro daquela qualidade. O que podia se lembrar, era que a peça fazia parte de algum vestuário de batalha.
Mas...? Pensou.
Torceu a sobrancelha. Suas lembranças o levaram a fazer uma cara feia, afinal seu irmão nunca tivera qualquer vocação para o combate, não conseguia nem mesmo manejar as ferramentas de trabalho, sem se ferir. Além disso, nunca teve qualquer treinamento, e muito menos podia pagar por isso. Seu comportamento era desajeitado, caia nas fezes, escoria na urina, era bem atrapalhado. Seus vizinhos na época o apelidaram de gracejo. Pois fazia as moças sorrirem.
Tudo isso só o deixava ainda mais curioso, sobre o tempo que esteve desaparecido.
Mas suas duvidas não importava naquele momento. Estava todo ardendo em febre e tinha que tira-lo desse lugar o mais rápido possível e leva-lo até sua casa, onde junto a sua esposa poderia providenciar os cuidados necessários. Não poderia perdê-lo novamente.
Tentou levanta-lo, mas viu que não teria forças e por isso foi arrastando seus pés até o carro-de-boi. Onde com muito esforço e persistência, conseguiu coloca-lo sobre o trigo. Trotou a animal e disparou o chicote como uma flecha em direção a sua casa.
Seguiu sem hesitar. Ouviu-se apenas o balançar das rodas, e o giro nas pedras da estrada carcomida. Seus olhos seguiam entre o chicote estendido e seu irmão. Que continuava com a mesma expressão, mas às vezes parecia torcer o rosto, entre aflição e seriedade. Não entendia aquilo, mas sentia no fundo sabia que ele precisava de ajuda, ele sempre precisava.
Passou pelos Roy, e percebeu a abundancia da plantação. Apesar disso, os dois gados que se esgueiravam perto de um pequeno riacho estavam magros. E a madeira da cerca estava podre. Nem eles podiam ter tudo, pensou. Viu um pequeno celeiro, que parecia estar abandonado, contrastando com uma montanha em verde claro, que gritava as cores de um belo verão. Tratou de atiçar o chicote e fazer o cavalo aumentar o trote, por que a estrada que contornava o lugar sofria um entrave das arvores e pedras que tinham caído na chuva anterior. O morro ficava cada vez mais íngreme, e isso só fazia o cavalo bater as patas nas pedras e desacelerar. Se em dias chuvosos e lamacentos podia demorar até mesmo horas para subir o lugar, agora em um dia brilhante e azul, o carro-de-boi pesava pela urgência, e pelas respostas da situação. Dessa vez duvidas podiam ter o mesmo peso que pedras.
Só queria avistar sua casa, chegar logo, tinha medo do que poderia acontecer com seu irmão. Afinal já tinha o perdido uma vez, onde tratou de enterra-lo nas palavras do esquecimento. No começo, não acreditava quando ele sumiu. Dizia para si que o devasso atrapalhado às vezes se remendava com alguma moça e desaparecia, não ligava, na verdade. As bebidas, as confusões e o seu jeito engraçado e petulante só o irritava. Nunca foram muito próximos, apesar de irmãos tinham comportamentos muito diferentes. Quando o galo cantava, já vestia as próprias calças, e estava pronto para o arado, enquanto seu irmão cultivava o próprio sono. Dormia feito um bebezinho nas tetas de uma mulher. Tinha sono pesado e por isso não importava o lugar, nem mesmo nas fezes de um boi. Quando levantava travava de roubar alguns ovos de uma galinha, e sumia. Podia vendê-los, ou come-los se não tivesse bebida.
Nunca se interessou pelo campo, nem mesmo desejava em ter terras. Isso o aborrecia. Nunca gostou de servir e nos barres fazia piadas e deboche dos senhorios, o que por muitas vezes lhe dava alguns ossos quebrados por algum soldado. Era resistente a ordens e vivia onde as palavras não importavam. Não tinha medo. Como um diamante tomava toda atenção para si. Tinha um belo sorriso com todos os dentes, o que atraia a atenção das moças. Mas apesar disso, não enveredava com nenhuma, para a tristeza de vosso pai, que jamais jurou na frente de um secular qualquer coisa, na maioria das vezes só acabava magoando as moças depois de desvirgina-las. Nisso era bastante perverso e gabava-se aos amigos.
Quando sumiu, ninguém entendeu. Mas essa certeza só começou a surgir depois de algum tempo. Apesar das confusões e dos romances pequenos, sempre aparecia. Ou pedindo ajuda, ou se escondendo de alguma coisa. Mas ele sempre voltava para casa. Naquele dia, tanto o sol como a lua estavam no mesmo lugar, não havia nada de diferente e ele tinha saído para pescar. Disse alguma coisa para sua esposa, mas a memoria da velhice não o ajudava a lembrar. Galos cantavam, e nem mesmo seu sono tão presente aparecia. No começo aquilo lhe dava certa satisfação em se ver livre daquele traste que dormia e comia e nada ajudava, parecia tão bom. Nunca aceitou o fato de um sujeito como ele, viver encostado em suas paredes. Por ordem era dono de metade da casa, dos bois, galinhas e da plantação, pois foi assim que vosso pai disse antes de partir. Sua única irmã havia casado antes de qualquer coisa, e sumido no mundo, portanto eram os últimos homens que restavam e senhores de tudo o que haviam conseguido.
Nunca mais tiveram noticias. Ninguém viu. Ninguém ouviu nada. Ninguém.
Era um silencio estrondoso que ficou cada vez mais alto na medida em que o tempo passava. Procurou em todos os lugares, sentia-se em parte responsável. Mas nunca encontrou nada. Depois de algum tempo tratou de esquecer. Embora seu duro trabalho e as gargalhadas da esposa e dos amigos o afastassem das lembranças. Não podia negar que no fundo a situação o entristeceu. No final das contas sempre acreditou que o jovem devasso algum dia encontraria seu caminho.
Mas isso nunca aconteceu.
Agora seu caminho era a estrada que chegava a sua casa. Finalmente estava lá. O cavalo segurou o trote e parou por alguns instantes. Observou a pequena casa de madeira que se estendida sobre o campo. Havia um pequeno jardim e um lago que contornava a decadente cerca de madeira em volta dos pinheiros. Onde a plantação salpicada de verduras quase estava crescendo. Das cordas que se estendiam em volta das arvores, as roupas pulavam ao vento. Sua esposa tratava de deixa-las não cair na lama que se alongava sobre as pedras no chão, de modo que a dança dos tecidos fosse contida por suas mãos enrugadas, mas bastante habilidosas. Seu cabelo branco não maior que um palmo do ombro, dançava na ventania em sincronia com o seu vestido longo e fechado. Parecia que todas as roupas e fios queriam sair dali. De repente uma peça conseguiu se soltar, e sua túnica de sono caiu, de modo que a lama manchou suas mangas. Visitaria novamente as aguas cristalinas do lago.
Notou o marido se aproximando, mas dessa vez o sorriso de um belo dia de trabalho dava lugar a um semblante preocupado e impaciente.
Esperou o carro-de-boi se aproximar e tratou logo de indagar o que viu.
O que foi? Perguntou ela ao esposo.
Tratou de descer imediatamente do carro-de-boi desconsiderando sua idade e sua pergunta e com a urgência chamou pela esposa.
Vem cá, olha só.
O quê? ... O que é isso?
Me ajuda a levar ele para dentro. Não vai acreditar. Pega ali. apontando os dedos.
Por quê?... O que aconteceu? Questionou ao marido.
Primeiro vamos colocar ele na palha. Está ardendo em febre. Então conto a você. Vamos.
Ela hesitou quando sentiu o forte odor do corpo, e por alguns segundos seu estomago gritou. Pensou por alguns instantes tentando entender a situação, mas decidiu não questionar mais sua ordem, pegou pelos pés úmidos e gordurosos, enquanto o marido tentava empurra-lo, escorregando em cima do trigo. Com bastante esforço, foram conduzindo o corpo do homem, até encontrar o colchão de palha e lá deita-lo.
Quem é? Perguntou ela agora de modo impaciente.
Meu... Irmão Falou o esposo enquanto tomava um pouco de ar.
Seu irmão! Olhou em tom de surpresa Aquele que, um dia sumiu?
Sim, ele mesmo! Tá bem diferente, né!
Ela fixou o homem na palha em todos os sentidos, mas sua memoria não conseguia visualizar nada em comum que o marido dizia. Se fosse ele, estava muito diferente, e nem mesmo lembrada pelas palavras conseguia notar qualquer semelhança com o homem deitado no colchão com seu cunhado, que tanto aprontava e costumeiramente a ajudava com as roupas e as galinhas.
Homem, tem certeza que ele esta vivo? Está cheirando muito mal Falou enquanto cobria o nariz. O esposo não parecia se incomodar tanto quanto ela.
Está vivo... Respirando Falou de modo impositivo enquanto apontava para o peito que realizava o movimento.
É, mas o que aconteceu com ele, onde ele apareceu... Assim agora?
O encontrei nos pinheiros perto da estrada de pedra, quando terminei de semear e armazenava o trigo. Estava voltando.
De repete assim...? Como um rato quando sai da toca?
Sim! Não vi como ele se aproximou, apenas escutei um estrondo, tão forte quanto os raios da noite.
Homem, mas ele não falou nada para tu?
Não, eu o encontrei assim.
Você viu se ele está machucado?
Não sei, mas percebi que está ardendo em febre de chama.
Ela tocou o topo da testa do sujeito, e sentiu o fogo flamejante da febre instaurada.
Nossa esse homem vai morrer! comentou aflita.
Essas palavras o deixaram nervoso. Em situações de pânico se sentia perdido e assustado.
Sua esposa percebendo o estado do marido deixou de se importar com o odor ruim e logo tratou de assumir uma postura ativa e foi buscar um pequeno pedaço de tecido onde o molhou em um balde com a agua das roupas encharcadas. Colocou sobre a testa circundando as sobrancelhas do homem. Para então, pegar uma pequena vasilha de barro, e com a agua das roupas levar até a boca do pobre homem. Quando abriu ela com os dedos, sentiu um ar quente saindo de dentro da sua garganta, como se estivesse queimando. Hesitou por alguns instantes, achou estranho, mas logo tratou de despejar a agua.
O velho, apenas observava a cena de uma forma intimista, enquanto sua esposa media esforços para ajuda-lo. Antes que o marido pudesse divagar em seus pensamentos, ordenou.
Me ajude tirar as suas vestes, vai diminuir sua febre, anda.
O velho hesitou um pouquinho, mas quando viu sua esposa agindo de forma ativa sentiu-se mais confiante também. Pegou nos sapatos pretos e gordurosos e tentou puxar. Enquanto ela tentava tirar a túnica e desbotar o cinto. Mas a gordura entremeada ao couro lhe fez pensar.
O cheiro ruim vem disso aqui? O que é? Falou, enquanto apertava os próprios dedos, tentando sentir a textura da gordura.
Pode ser porco, ou mesmo resto de carne de servo-morto apodrecida. Respondeu o esposo soltando os dedos do sapato também.
Homem, porco não cheira assim, servo-morto Como você sabe?
O cheiro é parecido, já que o senhorio utiliza os restos daqueles que são descartáveis como germinadores em algumas plantações.
É verdade isso? Perguntou a esposa aparentemente surpresa.
São nobres, eles podem fazer isso, têm direitos tanto pelo corpo quanto da terra.
Ela apenas assentiu e cabeça e concordou, dando-se conta do seu lugar enquanto uma simples camponesa. Um silêncio tomou o lugar de alguns segundos, que foi cortado novamente por uma nova duvida.
Couro preto, o que ele é? Um guerreiro? Disse fitando os olhos do esposo.
Não sei, mas é muito estranho, cê já imaginou ele assim?
Não! Quem sabe o que aconteceu depois que sumiu, era muito avesso.
Coisa boa parece que não foi.
É que nem o cão que perde os dentes, e não volta a come. Respondeu em referencia a um ditado popular.
O couro estava quente e até ardia nos seus dedos. Não era fácil puxar. Parecia estar remendado com sua pele.
Está apertado, não sai.
Ai!
Faz força. Disse ela.
Viu que não conseguia tirar a túnica. Ergueu as mãos do homem e pediu ao esposo para ajuda-la. Ambos se esforçaram, e na terceira vez, viram algo além do couro escuro.
O coração de cada um apertou no peito.
[size=12pt]Sua pele estava toda queimada. E em algumas partes havia carne viva. Muito sangue. Bolhas e um cheiro de pus chamuscado. A disposição dos cortes faziam palavras, símbolos ou coisas estranhas. Não entendia e muito menos sabia ler. Mas parecia horrível e macabro.
Oh!
Oh! Oh!
No momento nem parecia acreditar. Achou tudo muito incomum e estranho para sua vida simples e cotidiana. Ficaram muito assustados e com o choque se afastaram imediatamente. Para logo observa-lo com mais cuidado e atenção, com um pouco menos de medo.
Horrível... Horrível! Disse ela, enquanto ouvia seu estomago embrulhar.
Ele nada respondeu, mas continuou a olha-lo com toda a atenção do mundo.
Vem cá Disse ela.
Pegue o pano lá. Vamos cobri-lo.
O velho andou até o fim da casa, colocou as mãos dentro de uma caixa de madeira ao lado de duas pedras. Puxou fazendo força e viu algumas ferramentas de trabalho também. Foices e uma pá, bem velha por sinal. Tirou um pano maior, e bem mais sujo que o anterior. Trouxe rapidamente aos dedos da sua esposa. E cobriram o torso do homem.
Ver seu irmão naquela situação, o fez lembrar atônito da angustia do passado em que ele sumiu. Sentiu medo.
Irmão acorda. Acorda Disse o velho. Tentando aumentar a voz em tom de desespero.
Ele não vai levantar. Deixa disso homem Falou tentando abafar a tristeza nos olhos do esposo.
Quê... Tem que levantar. Não quero perde-lo.
Cê precisa se acalmar, temos que ver se a febre vai baixar, fica sossegado. Lembra da Varcosa? - Disse enquanto tocava os ombros do seu esposo.
Que tem?
A gente não curou ela? Estava bem sofrida, nas ultimas, mas ficou boa.
Sim, lembro.
Gostava bastante daquela vaca, pena que se foi.
É, mas a febre a gente deu conta.
E do maldito lobo também, não se esqueça.
Claro que não. Nesse dia você até parecia um guerreiro. Tava bem forte e corajoso.
Sorriu ao mesmo tempo em que sentiu a provocação da esposa, mas preferiu não contraria-la, pois sabia que não era um grande caçador. Arar o campo e semear os trigos, fazer da terra sua obra de arte era sua maior paixão.
Sentou na porta da casa, e pensou alguns minutos enquanto coçava a barba. Os cachorros tentavam se aproximar do seu irmão, e um gato na janela olhava a situação com bastante atenção. Os cães colocavam o focinho, sentindo o cheiro ruim de quase morte e logo depois se afastavam rapidamente, enrocando as próprias patas. Sabiam que dali nada sairia de bom.
Passaram-se algumas horas, e a grama começava a ficar um pouco mais úmida. Degustava o frescor que o tabaco queimado, colhido a três metros do próprio campo, o trazia. Sua esposa não gostava muito do cheiro, mas nunca implicava e sabia que isso o deixava mais tranquilo. Puxou um pouco mais á fundo a garganta, o que o fez tossir.
Dividia seu olhar entre a mulher colhendo algumas plantas e puxando a terra. Levantado algumas pequenas raízes, e seu irmão.
Guarde o cavalo, deixa de ficar preocupado. Vou fazer um chá-de-noite. Disse tentando tira-lo dos pensamentos dispersivos.
Tá
Levantou cansado, com bastante esforço. Mas logo conduziu o animal até o pequeno estabulo, ao fundo da casa. Alguns cachorros os seguiram. Tomou um pouco de agua que havia na caixa. Tirou à parelha e desamarrou o couro que a prendia. O cavalo sentiu-se mais aliviado. Pegou algumas palhas e jogou sobre as fezes que encrustavam o chão.
Coçou a barba.
Aquelas imagens macabras ainda estavam em sua mente. Havia algo nelas. Todas essas coisas lutavam entre seu medo e a curiosidade. O que tinha acontecido? Passou-se tanto tempo, e isso também o assustava, mas naquele momento era como se o tempo não tivesse passado. Tudo parecia presente. Era como se seu irmão nunca tivesse sumido. Havia o encontrado na manhã seguinte. Desse jeito, isso mesmo Desse jeito?
O que um homem faz para ser castigado assim? Falou baixinho, como se estivesse conversando com o cavalo.
Algo muito ruim, muito ruim Respondeu para si, tentando imaginar algum castigo tenebroso.
Seculares furiosos, punições de senhorios, jovens bem acompanhadas, criaturas. Havia tanta coisa nesse mundo que podia feri-lo. Em um lugar onde além das colinas havia um grande desconhecido. Mas não sabia, pois nunca tinha saído dali. Todo o conhecimento que possuía não passava de lendas e cochichos. Palavras e mais palavras. Embora assustadoras, não bastavam para fazer aquilo com um homem.
Sentiu-se pequeno, e mais pequeno ainda por ser um velho camponês, que passou tanto tempo da sua vida no mesmo lugar. O que ele viu? O que fez? Amou muitas mulheres? Conheceu muitas montanhas? Havia inveja em suas duvidas. Se por um lado isso o assustava, por outro o deixava ainda mais animado. Contudo havia sua esposa, sua vida. Tudo o que construiu e fez durante todo esse tempo. Isso também tinha muito valor. Talvez até mais que o próprio ouro. Deu-se por satisfeito e no final das contas era ele quem estava de pé.
Quando voltou a casa, viu a esposa umedecendo outro tecido, em um balde ao lado da cama.
Como ele tá?
Melhor... Um pouco melhor. Acho que a febre abaixou um pouco.
Queria levantar o trapo que cobria o dorso e ver aqueles símbolos macabros, sua curiosidade parecia mais forte que o nojo.
Ajuda aqui! Disse a esposa, pegando um punhado de musgo batido e pegajoso, que formava uma pasta cinza-avermelhada.
Abre.
Abriu os dedos, e ela colocou uma parte daquilo. Um pouco escorreu no chão e a outra parte grudou na palma da mão. Cheirava muito mal, e estava levemente aquecido.
Sua esposa logo levantou o trapo que cobria o dorso. Viu algumas moscas saindo, e junto o cheiro ruim de carne assada. Pegou com os dois dedos indicadores, na mão do esposo um pouco daquilo e passou fazendo um movimento circular sobre os ferimentos. Agora o velho podia observar melhor a cena.
Havia um circulo no peito. Que se estendia do topo até quase o umbigo. No centro havia alguma coisa escrita. Talvez alguns números. Não podia identificar. E em volta das costelas buracos triangulares ou mesmo em formato irregular, que se estendiam da base até o fundo das costas. Suas veias pretas contornavam o sangue seco nas bordas. E centenas de bolhas de vários diâmetros, com pus ou já abertas se estendiam por todo o corpo. Apesar disso sua pele ainda estava muito quente, era como se estivesse queimando por dentro. Seu rosto era bastante ruborizado, exceto pela ausência de machucados ou ferimentos. Tudo parava até o começo do pescoço, onde parecia mais limpo e um pouco mais saudável.
Pobre homem - Disse ela.
É Respondeu abaixando a cabeça, olhando a degradante situação.
Dessa vez as esperanças do velho começaram a diminuir. Já podia vislumbrar que a morte era o único caminho do seu irmão. E mesmo que ficasse curado, provavelmente teria o mesmo fim da Varcosa, invalida e inútil.
Sua esposa entrelaçou seus dedos.
Vamos refletir. Pedir ajuda.
Assentiu com a cabeça, frisando um tom serio e triste.
Nunca foi um homem religioso, mas também não se sentia um báculo, Acreditava na vontade e prosperidade que o Grande Devon trazia. Procurava por vez alguns seculares para consultar seus ensinamentos. Tinha um oculto desejo de ser condido no grande Templo vermelho. Coisa que sua pobre fortuna não permitia, e por isso se contentava com a pequena caixa de madeira ao fundo da casa.
Fecharam os olhos, colocaram a mão no peito. E de joelhos cantaram baixinho o cântico de rivação.
A vontade suprema seja feita.
Por todos os nomes
Devon, Devon, Devon
Seja sangue do meu sangue
Carne da minha carne
Pelo teu corpo, peço ao meu
Que cure todas as feridas, todos os desejos
Devon, Devon, Devon
Sentou-se em um banquinho talhado bastante pensativo. Sua esposa trouxe uma caneca de chá-de-noite. O fogo fisgava e chamuscava junto ao vento das frestas. Estrelas teciam o céu, e a noite aparentava estar assustadoramente magnifica, convidando, todos os tipos de mosquitos e insetos saírem para brinda-la.
Cê sabe o que vai fazer quando ele morrer ? Quer conte-lo? Perguntou a esposa, enquanto bebia um pouco do chá em sua caneca. Sendo direta.
Não sei, talvez?
Cê sabe que temos poucas moedas, os bois ainda estão magros e daqui a um pouco chega o inverno. Homem, acho melhor não.
Mas olha tudo que ele passou, merece sofrer assim?
Não... Não. Claro que não homem, ninguém merece. Nem o cão mais ardido.
É.
Mas a gente precisa pensar em nós... Eu e tu. Tem poucas moedas. Tem certeza que é teu irmão? Indagou ao esposo, de forma direta e assertiva.
Sim, tenho. Notei na primeira vez que eu o vi. Não me esqueceria daquele rosto. Respondeu com toda certeza que achava.
Mas cê tem que reconhecer que ele está muito diferente. Vai que é alguém parecido. Faz vinte anos, homem. Como tu podes afirmar assim.
Mas eu sei Apontou os dedos diretamente a testa do sujeito.
Olha lá, tá vendo aquela cicatriz.
Sim! Cê me contou uma vez, é do chute que ele levou?
É. De uma égua bastante caprichosa. Tentou fazer gracinhas e se montar e por isso acabou levando. Quase morreu.
Quanto tempo faz?
Não sei. Ainda era pequeno. Faz muito tempo. Depois disso ele ficou diferente. Do jeito que a gente lembra.
E por isso, tu tem certeza que é ele.
Um pouco... Mas não só isso.
O que mais então, homem.
Não sei explicar... Acho que se ele precisasse de mim. Viria atrás de mim.
Mas cê não gostava dele, sempre me dizia isso. Queria ele fora daqui.
Mas não gostava mesmo. Mas é irmão. Sangue do meu sangue. Quando vosso pai morreu, ele ainda era um menino, e a Anette já tinha casado e saído. Eu fiquei responsável.
Ele cresceu desse jeito feito cão, por que eu não fiz nada para domina-lo.
Mas tu não é o pai dele.
Não... Não sou. Mas podia ser diferente.
Muita coisa na vida pode ser diferente, mas não é.
É. Diferente dele, eu sempre quis ficar por aqui e crescer.
Sim. É da terra que tu gosta. Sempre foi um homem trabalhador.
É... Desde que vosso Pai me ensinou a semear a terra. Sempre fui... Talvez...
Talvez o que?
Nada.
Não sei o que passa contigo, mas tu estás com alguma duvida caminhando na cabeça?
Podia ter saído.
Saído para onde?
Viver lá fora... Quem sabe...
Para com isso, homem. Tu resolveu ficar aqui comigo, crescer na terra do teu pai. Tem boa comida, um teto para deitar, animais para engordar. O mundo lá fora nunca foi contigo.
Sim, é verdade.
O que faz falta para tu, sempre foi um filho.
É
Nesse momento os olhos de ambos se cruzaram, mantendo uma estranha quietude, embora sobre a superfície uma silêncio gritante criava uma tensão.
Tu sabe que depois que perdi o primeiro, nunca mais. Tu sabe...
Sim... sei.
Tu nunca procurou outra mulher?
Não... Não. Eu queria contigo. Nunca me deitei com outra.
Nunca mesmo.Cê tem certeza?
Sim.
Ficaram alguns minutos com a expressão perdida, como se houvesse alguma coisa de muito delicado nessas palavras. Parecia atingir algo muito profundo dentro dos dois.
Levantou-se e repetiu mais uma vez o chá-da-noite que estava bem saboroso. Assentiu a esposa.
Muito bom.
Ela sorriu.
Obrigada, coloquei pequenas raízes de bodó. Deixam mais saboroso. Respondeu.
Lambeu a ponta dos lábios. E por um segundo se olharam diferente. Havia alguma coisa ar.
Os contornos das pernas da sua esposa começaram a ganhar forma. E seus peitos caídos e flácidos agora pareciam como de uma jovem moça, embora escondidos sobre a túnica pesada. Aproximou e bem devagarinho e começou a acaricia-la. Ela tomou de bom tom o carinho e deixou a caneca ao lado. Colocou sua mão entre as pernas do velho e começou a beija-lo.
Enquanto os gatos enveredavam pelo campo, caçando presas. O amor dava lugar há um dia cansativo e dispendioso. Línguas se encontravam. E cabelos brancos se enrolavam diante do desejo ardente. Penetrava e ela gritava em um ritmo jovial. Fazia bastante tempo, e quem sabe tinham esquecido o próprio ato. Mas embora a pele fosse enrugada, flácida e cansada, o amor continuava jovem o bastante. Sentiam o próprio êxtase da primeira vez em que se conheceram.
Ela caiu deitada e cansada sobre o próprio corpo. E ele sobre o dela. Olharam-se. E riam como duas crianças. Saboreando o sorriso um do outro.
Por um momento deixaram de acreditar no ato, pois fazia muito tempo que não acontecia. Enquanto velhos, pensavam que o deleite do sexo, fosse apenas para os jovens. Mas nesse momento não importava, pois o calor dela aquecia o seu. Apertou seus dedos, delicadamente, sugerindo um carinho.
Permaneceram ali por algum tempo. Agarrados um ao outro, perdidos em si. Esquecendo completamente o homem no colchão. Quando subitamente se levantou.
Vou ver como ele está.
Tá Respondeu ela, com palavras sonolentas e cansadas.
Ouviu os passos recogitando novamente para si. Olhou para ela completamente assustado e perdido.
Ele fugiu!
Como? Respondeu ela agora também em choque.
Ela levantou rapidamente onde apenas um pano acinzentado cobria o corpo. Foram até o colchão do homem.
Havia muito sangue espalhado sobre o lugar. Um muco preto e esverdeado impregnava a palha e o chão. Os panos avermelhados estavam jogados sobre a madeira da janela.
Um estranho vento soprava.