No Canto mais Sombrio do Meu Quarto
Eu sinto uma presença no canto mais sombrio do meu quarto. Não tenho certeza se ela é boa ou ruim, mas essa informação não muda o fato dela estar lá. Tanto que eu não consigo imaginar meu quarto sem ela, o que é bem estranho, mesmo assim, não parecia algo maligno para mim, já que eu sentia como se fosse algo do ambiente e o costume viria com o tempo.
Admito que no primeiro mês eu podia apenas sentir tal presença, mas mesmo sem nenhum tipo de sinal visual, era óbvio que tinha algo ali. Chamei alguns familiares e amigos para checarem o quarto e falar o que sentiam, porém a resposta sempre era a mesma, era coisa da minha cabeça, não havia nada ali para ver ou sentir. Para todo mundo que eu perguntei, era apenas o canto mais afastado do quarto, e por isso era mais escuro. Após tantas visitas falando o mesmo, comecei a pensar que realmente era só coisa da minha cabeça, mas isso foi um erro, porque independente do quanto você ignora algo, não quer dizer que esse algo irá deixar de existir.
Passado esse primeiro mês, coisas estranhas começaram a acontecer e foram escalonando até um ponto que eu não podia mais ignorar. Haviam dias em que eu era acordado no meio da madrugada me sentindo completamente exposto e observado, mas, no fim das contas, não importava o quanto eu ignorasse aquela coisa, continuava sentindo que naquele ponto em específico, havia alguma coisa, algo que eu não entendia. Ainda sim, sempre voltava a dormir depois de ser acordado e a vida continuava. Em um ato de puro desespero devido às várias noites mal dormidas junto com aquela sensação de estar sendo observado, decidi dormir com um rosário debaixo do travesseiro e não tenho a menor dúvida que foi essa ação que fez tudo piorar drasticamente na casa. Sim, ele realmente estava lá e sinceramente? Não gostou nada do que eu fiz.
Três dias depois de colocar o rosário, eu já podia ver em meu corpo os sinais de seu descontentamento. Marcas de dedos começaram a surgir por todo o meu corpo, principalmente em minhas pernas e barriga. Me parecia que o rosário dava uma certa proteção para a parte superior do meu corpo, mas essa proteção não evitou que eu acordasse com uma marca de mão no meu rosto em uma manhã de terça. A cruz posta para me proteger não tinha sido suficiente para o afastar completamente, mas tinha deixado-o muito, mas muito furioso.
Em uma manhã de domingo, decidi ir na missa para falar com o presbítero que a dirigia para no final dela eu contar sobre o que estava se passando em minha casa e sobre o ser que diariamente me atormentava, porém, tive a má sorte de ser recebido por um padre que não estava com paciência para lidar com o assunto e que me ouvia de uma maneira completamente cética. Não o julgo, neguei por muito tempo, mesmo sentindo aquela presença dia após dia. E mesmo ele sendo um homem de fé, quantos já deviam ter chegado até ele falando sobre casos de exorcismo e possessão demoníaca por pura brincadeira ou só para tirar sarro. Não consigo nem imaginar.
De qualquer forma, tudo mudou quando eu levantei a camisa e arregacei um pouco a calça, mostrando-lhe as marcas novas e velhas de mãos que povoavam a minha pele. Ele arregalava os olhos, visivelmente chocado com o que via e logo após tal reação, pediu para eu cobrir as marcas e segui-lo para uma área da igreja que admito nunca ter ido na vida. Se bem que não era comum para mim estar em qualquer tipo de lugar sacro, já que era a primeira vez desde minha infância que eu ia à igreja.
Num canto mais reservado, em uma salinha que era metade escritório e metade armazém, o homem de fé me explicou que em toda a sua vida, nunca tinha visto um caso tão grave quanto o meu e disse que iria mandar naquele mesmo dia uma mensagem ao Vaticano para poder abençoar a minha casa e expurgar todo o mal que existia lá.
Volto para a minha morada mais nervoso do que quando saí. Para o presbítero reagir daquela forma e ainda me mandar sair imediatamente da casa, o caso era realmente sério. Infelizmente para mim, eu não tinha lugar para onde ir, salvo a casa do meu irmão, mas não nos falávamos há muito tempo, então eu não queria retomar o relacionamento só por conta da situação que estava vivendo no momento. Também não tinha dinheiro para alugar um lugar pela semana que faltava para a resposta do Vaticano chegar, então minha única solução foi engolir em seco e aceitar a realidade em que eu sobreviveria pela semana que me deram.
Acho que eu não preciso dizer que nos dias que se seguiram, a situação só piorou, e de maneira mais rápida do que eu esperava. Os barulhos e sensações ruins que eu só sentia e ouvia quando estava no quarto se espalharam para a casa toda. Paz não era algo que existia mais na minha vida. As marcas em meu corpo rapidamente se tornaram ataques mais graves, como arranhões, alguns deles tão fundos que chegavam até a sangrar. Rolou até o que pareceu para mim uma estranha competição de arremesso de porcelana, onde claramente o alvo era a minha nuca. A minha sorte foi que o que quer que quisesse me ferir, tinha a pontaria tão boa quanto a minha e todas as xícaras estouraram na parede à minha frente.
Faltando quatro dias para a resposta do Vaticano, o pior aconteceu. Depois de ser mais uma vez acordado de madrugada, percebi que não consigo me mover, quando abro os olhos, me deparo com um homem alto, vestindo um terno branco e chapéu coco ao lado da cama.
O quarto possuía um forte cheiro de enxofre e aquele senhor decrépito com as órbitas dos olhos vazias não parava de me encarar, tendo o desespero como único sentimento que eu podia sentir ali. No canto mais escuro do meu quarto nunca viveu algo bom, e sinto que me dei conta tarde demais. Era possível ver um fino fio de saliva escorrer por sua boca, como se o maior desejo daquele ser fosse tomar a minha alma de assalto. Eu tentava gritar, mas nenhum som saía. O homem de chapéu coco olhava as minhas tentativas de me desvencilhar do seu controle com um sorrisinho de canto de boca e um olhar de puro desdém. Era como se ele falasse “tolo, não importa o que faça, será tudo em vão, sua vida termina hoje”. Em um certo momento, acabei por recuperar a minha voz e as primeiras palavras saíram esganiçadas da minha boca foram “O que você quer de mim?”.
Eu ter conseguido falar pareceu abalar um pouco a entidade, mas percebi que era algo que eu não deveria conseguir fazer. Ainda sim, ela abre um largo sorriso, se aproxima de mim quase encostando seu rosto putrefato em minha orelha e solta o mais venenoso dos sussurros: “Sua alma”.
Mais uma vez o homem se afasta de mim e começa a andar pelo quarto, mas dessa vez tinha algo de diferente. O homem de terno começou a passar as mãos nos móveis que, em contato com a sua pele, entravam em combustão instantânea. Fumaça negra subia do estofado da minha cadeira preferida e do pequeno guarda-roupas onde eu guardava todos os meus bens mais preciosos. Passou a mão também no meu querido violão e, por fim, na cama onde eu me encontrava.
Cercado pelas chamas que eu acreditava serem vindas do próprio inferno, admito que desisti bem rápido de uma fuga milagrosa. Com certeza devia ter ouvido meus instintos, aquele ser sempre esteve lá desde o dia que visitei a casa pela primeira vez. Sentia algo de estranho na casa, mas fui seduzido pelo valor mais baixo, não tinha o que fazer.
Quando as chamas quase estavam tomando conta de todo o quarto, senti a tensão em cima do meu corpo se dissipar. Pela primeira vez vejo o rosto do homem expressar ódio, e em seguida medo. Sua forma tremeluziu e ele simplesmente sumiu, deixando uma pequena pilha de um pó que eu imaginava ser enxofre, no ponto onde ele desapareceu. Senti em meio ao desespero de me ver rodeado de fogo que a entidade não estava mais lá. Pela primeira vez eu estava realmente sozinho no quarto, não sentindo presença alguma.
Corri pelas portas, pedi um táxi, já que felizmente o meu celular se encontrava carregando na sala, engoli o meu orgulho e fui direto para a casa do meu irmão. Assim que entrei no carro, olho para a janela do meu quarto ainda em chamas que dava para a rua e vejo que o homem de terno branco me saudava com um leve aceno de sua mão pútrida.
No outro dia, com o fogo já extinto, voltei para a casa para tentar recuperar o que sobrou para enfim pôr a casa à venda. Reunindo toda coragem que ainda me restava, decidi entrar no meu antigo quarto que, como podia imaginar, estava completamente destruído pelas chamas, salvo por uma única coisa: o rosário de prata. Ah, e antes que eu me esqueça, independente do que tenha me salvado na madrugada daquele dia, quando me despedi completamente da casa, sim, no canto mais sombrio do meu quarto, ele ainda estava lá. Escuto uma risada rouca e pausada em minha mente, como se fosse a de um velho fumante que dedicou toda sua vida ao seu vício e naquele momento mal conseguia respirar, fecho a porta e vou para o mais longe dali, vou para nunca mais voltar.
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