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O Julgamento de Orixe pelas mãos de Ferrie

Zugzwang

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17 de Junho de 2015
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Os clientes de qualquer bordel eram menos corajosos quando o “mercenário sujo e vadio” Ferrie simpatizava com as garotas de lá e amanhecia nele. A Igreja tolerava as casas de mulheres. Conter a luxúria do homem preservava a sociedade dos males da sodomia, do vício da masturbação e as moças inocentes do estupro, conforme escrevera Agostinho de Hipona. Desnecessário dizer, os estimados rapazes resguardados da última tentação da lista não eram os mais educados e se sentiam bem à vontade com moças pouco inocentes.

Quenburga, arrogante e indomesticável, irritava-se com ele, por todo o apreço e fama com que o mimavam, ainda que só entre marginalizados. Ela odiou dar o recado de que uma judia o procurava, mas a mulher em questão era protegida de Lecia, católica devota. Lecia exercia a caridade, os bebês abandonados eram guiados por ela ao convento ou ao monastério – alguns filhos de prostitutas, quando os métodos contraceptivos falhavam ou não eram mortos ao nascerem, coisa que, segundo se dizia, eram frutos que se colheram de duas ou três noitadas de Ferrie. A família da judia sustentava um monastério com seus empréstimos e por isso se conheceram.

A reputação de Ferrie decaiu mais quando ele se tornou um campeão por dinheiro – recebia para substituir e representar disputantes nos Julgamentos por Combate. Seu temperamento irritadiço e avesso à rotina o induziam a uma vida de confusões e brigas. Lucrar por isso era perfeito. Soube, pelo mensageiro, que a judia gostaria de seus serviços contra Orixe, sob as acusações de roubo e destruição de propriedade. A princípio, Ferrie mentalmente desprezava a mulher por ter medo de sujar sua reputação indo a um local tão mal falado. Mas logo acendeu em sua mente uma idéia, e era muito conveniente que ninguém soubesse que havia judeus envolvidos, pois eles eram considerados detentores de poderes mágicos adquiridos por um pacto com o Diabo.

Orixe era um vassalo do lorde Neufmarche. Temido e secretamente odiado por todos em posição inferior que o conhecessem, vistoriava as terras com rigor. O treinamento dado aos aprendizes era duro. Desmaio por exaustão e fratura de ossos eram recorrentes nas fases preparatórias. O boato de que seus métodos causaram a morte de um deles jamais foi levado adiante.

Ferrie não perderia a chance. Encontrou-se com a judia para acertar seu pagamento. A moça estava visivelmente abalada – como se o problema fosse maior do que o contado. Outro detalhe corroborou com esta impressão. Ela o disse que seu pai não deveria saber da contratação. Era um homem zeloso das finanças, a moça pagaria com o que havia guardado. Lecia alegaria que ela usou para a caridade e, para que isto não fosse mentira, resolveram unir o útil ao agradável e se ocultarem atrás do comerciante Wiscar. É dito que Orixe assaltou Wiscar e desonrou sua filha. O vendedor idoso perdeu seu filho num acidente fatal de viagem, quando o rapaz cruzava o rio, ficando sem um fiel auxiliador e boa parte da carga. Não tinha representante para o combate, nem poderia arcar com os custos de um. Antes de ir ter com ele, recebeu dois denários da judia. Depois de conversar com Wiscar, muito feliz com a notícia, ganhou o terceiro.

Cinco moedas de prata (abreviadas como d., de denário) devem ser dadas à Igreja, uma para cada chaga de Cristo, consagrando o ritual do Julgamento. Ferria matava o tempo no bordel enquanto pensava num meio de obter o resto. Aiora, a sua favorita da casa das mulheres, preocupou-se muito. Os combates terminam frequentemente em morte. Mas, ciente de tudo o que era podre sobre Orixe e que ocorria debaixo dos panos, além de que Lecia tinha interesse no caso, retirou de suas finanças um denário e entregou a ele. Ora, Aiora sonhava em criar um filho, um dia, para compensar os que perdeu. Consciente disso – mesmo que ela nunca houvesse admitido expressamente – Ferrie se comoveu com o sacrifício e deu de seu bolso o último denário.

À noite e em segredo, Ferrie foi ter com Kontxesi, uma herbalista que, segundo boatos, também praticava bruxaria. Ela tinha uma dívida com ele e o favor que ela fez para o pagar foi mantido em segredo. Logo todos os preparativos estavam feitos.

Quando as acusações foram feitas e, Orixe, comunicado oficialmente. O locatário feudal estava enlouquecido pela a audácia com que sujaram sua reputação. Prontamente aceitou o combate para que, de uma vez por todas, vissem que até o próprio Deus o honrava.

Antes do meio-dia o combate se iniciara. Ambos os disputantes com armadura de couro. Orixe portava um martelo de guerra e um escudo. Ferrie optou por igualmente um escudo e um bordão de ponta afiada. O vassalo estava cegado pela raiva. Investia, atacava. Ferrie desviava os golpes, ora com o escudo, ora com o bordão. O impacto era o suficiente para machucá-lo, mas Orixe se desgastava fisicamente com velocidade. Quando o vassalo pareceu ter perdido o ar, Ferrie aproveitou o tempo para correr e empurrá-lo com o escudo. Orixe ficou esgotado, perdeu o equilíbrio. Ferrie acertou em cheio uma estocada em seu rosto, mas com o pomo da arma. Esta parte se trincou e do nariz de Orixe escorria um líquido negro.

O vassalo tombou, mas continuava se debatendo e tentando atingir seus socos, já que as armas caíram de suas mãos. Ele não gritava “Craven”, que é subentendido como “Eu fui vencido”, quer por arrogância, quer por ser estranhamente incapaz disso. A luta foi para o chão. Ferrie não teve nenhuma dificuldade em bater a cabeça do inimigo contra o chão múltiplas vezes, levando apenas socos fracos no baço, até que Orixe se tornou imóvel.

Ele estava morto. O corpo estava pálido, como se morto há horas, mesmo que o pôr do sol mal tivesse chegado. Julgaram que ele fora amaldiçoado por pecados ocultos Muitos se alegraram naquele dia, em verdade. Os pormenores não importavam. Porque os sacerdotes todos concordaram que o próprio Senhor Jesus Cristo demonstrou sua opinião e fortaleceu o inocente ali. E a sociedade, a comunidade de fé, disse Amém e Amém.

 
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