Pensando Jogos | Scorn: Dasein H.R. Giger e os mundos absolutamente Outros
Scorn é um game episódico de horror e tiro em primeira pessoa (FPS) que está sendo desenvolvido pela Ebb Software e publicado pela Humble Bumble para a plataforma PC/Windows. À primeira vista, tratar-se-ia de mais um game de horror cuja existência dependeria apenas de um efeito de moda. Mas o que chama de fato a atenção para ele é, sem dúvida, sua filosofia de design fortemente inspirada na estética surrealista e fantástica de H. R. Giger. Para quem não sabe, Giger foi um artista plástico suíço responsável pela criação de uma das criaturas mais icônicas da ficção científica moderna; a saber: o xenomorfo dos filmes de Ridley Scott. Embora os principais traços da estética gigeriana sejam o grotesco e o abjeto, a escolha desses elementos, do ponto de vista do game design, não visa causar um efeito de estranhamento despropositado no jogador, por meio da exposição supersaturada de imagens-monstros, como um game de horror tradicional que abusa dos lugares comuns do gênero para impactar o jogador. O grotesco e o abjeto, tanto para Giger quanto para as mentes por trás do game design de Scorn, são um efeito que se produz pela estranheza do encontro com o Outro, o absolutamente diferente, em suma, o não-humano impossível de reconhecimento e identificação. Scorn, tanto em sua proposta quanto na gameplay da versão de demonstração que fora lançada, parece beber da mesma fonte filosófica de Giger.
The Spell II (1974).
O game parece articular a estética de Giger com aquela valiosa lição lovecraftiana, segundo a qual o horror irrompe no sujeito pela emergência do estranho em seu campo perceptivo; estranho esse que pela sua natureza estrangeira desafia a consistência do mundo próprio do sujeito. Estranho = Outro. Tenhamos essa fórmula em mente, se quisermos compreender o que está em questão aqui. Outro não é o outro do mesmo (um outro homem, um outro sujeito), é preciso imaginarmo-nos como os europeus ao depararem-se com os diversos povos da América, questionando-se se aqueles que surgiam diante de si eram de fato homens ou animais; ou, ainda, uma forma inferior de sub-humanidade. Entramos, sem dúvida, no campo daquilo que alguns ramos da antropologia, da filosofia e da psicologia contemporâneas chamarão de xenologia (o termo xeno, traduzido do grego, significa estrangeiro, enquanto o termo logia vem do grego lógos, que significa estudo, palavra ou verbo): o estudo do estrangeiro ou, em termos antropológicos mais precisos, o estudo ou pesquisa daquilo que não é humano.
Necronom IV (1976).
Vale lembrar que o xenomorfo nada mais é do que a forma estrangeira por excelência. A estrangeiridade atravessa toda a obra de Giger, suas criaturas biomecânicas, como que vindas de um tempo e espaço indefinidos, questionam constantemente o sentido do humano: o transhumanismo é o leitmotiv do seu trabalho. Seu mundo é povoado por seres ou entidades com os quais os mecanismos de identificação a si no caso, identificação ao homem são desabilitados; eles não são assimilados à nossa humanidade, ao contrário, nós é que somos capturados pela estrangeiridade de sua natureza anômala, de tal modo que tornamo-nos o avesso do humano, revelando, dessa maneira, a nossa desumanidade: o monstro que nós mesmos somos. O Homem é seu próprio Outro. A familiaridade de certas características anatômicas das criaturas gigerianas (braços, pernas, seios, olhos, mãos, dedos, órgãos sexuais etc.) com os seres humanos, embora presente, não deve levar-nos a conclusões apressadas. Somos tentados a dizer que tais características tão-somente revelam o parentesco desses seres conosco, mas assim como na história do primeiro contato dos europeus com a América, a familiaridade só faz amplificar a estranheza. Justamente por elas parecerem humanas, é que suspeitamos ainda com mais vigor que não o sejam.
Além do que já foi dito até aqui, não podemos deixar de abordar um outro vetor fundamental de estrangeiridade: a fusão entre o orgânico e o maquínico, que borra a fronteira entre o vivo e o morto, o animado e o inanimado e, no limite, entre o humano e o não-humano. Giger explora esse conceito-chave da ficção científica, segundo o qual a máquina, antes de ser aquilo que assegura a diferenciação entre o homem e tudo aquilo que ele não é, põe em xeque todo esforço de diferenciação. Nas palavras de Cuadros Contreras: A ficção científica evidencia essa impureza, deixa ver, por contraste, que o homem não é uma essência distinta das outras, mas que se encontra aparentado com os animais, com os robôs e com os deuses, se bem que, por sua condição híbrida, assemelha-se mais a um cyborg. À impureza da natureza xenomórfica corresponde a impureza de nossa natureza humana, demasiado humana; questionar se as criaturas de Giger são ou não humanas é questionar se nós mesmos não somos, tais como elas, outra coisa que não humanos.
Além do que já foi dito até aqui, não podemos deixar de abordar um outro vetor fundamental de estrangeiridade: a fusão entre o orgânico e o maquínico, que borra a fronteira entre o vivo e o morto, o animado e o inanimado e, no limite, entre o humano e o não-humano. Giger explora esse conceito-chave da ficção científica, segundo o qual a máquina, antes de ser aquilo que assegura a diferenciação entre o homem e tudo aquilo que ele não é, põe em xeque todo esforço de diferenciação. Nas palavras de Cuadros Contreras: A ficção científica evidencia essa impureza, deixa ver, por contraste, que o homem não é uma essência distinta das outras, mas que se encontra aparentado com os animais, com os robôs e com os deuses, se bem que, por sua condição híbrida, assemelha-se mais a um cyborg. À impureza da natureza xenomórfica corresponde a impureza de nossa natureza humana, demasiado humana; questionar se as criaturas de Giger são ou não humanas é questionar se nós mesmos não somos, tais como elas, outra coisa que não humanos.
Biomechanoid 75 (1975).
O game design de Scorn gira ao redor da ideia de ser jogado para o mundo. Ideia que se expressa já no título do primeiro episódio, intitulado Dasein. Esse é um termo alemão cuja tradução convencionada no Brasil é ser-aí ou ser-aí-no-mundo (da = aí, sein = ser). Trata-se de um conceito seminal do filósofo alemão Martin Heidegger, autor de Ser e tempo, uma das principais obras de filosofia contemporânea. Para Heidegger, em termos bastante gerais, o Dasein é a presença do ser no sendo, isto é, existência indeterminada do ser em seu devir. Quer dizer que a existência do Dasein aparece, para si e para todos os outros entes, como pura possibilidade ou virtualidade, uma presença sem história. Dizer que o Dasein consiste numa presença sem história significa dizer que, tal como o jogador em Scorn, o ser está lançado no mundo, desprovido de todo e qualquer arcabouço pré-existente que lhe assegure um sentido anterior ao seu estar-no-mundo. O Dasein só é existindo, ou seja, ser e existência coincidem, tornando-se uma só coisa no interior do Dasein. Tudo se passa como se o ente (nós mesmos) estivéssemos à deriva, enquanto existência indeterminada, porque somos essa abertura ao desconhecido e ao estranho. A direção de arte, o level design e as mecânicas presentes em Scorn tem por objetivo lançar o protagonista (e o jogador) num mundo o qual ele não reconhece, e nem tampouco se reconhece. Como em Giger, somos apresentados a um mundo absolutamente outro.
Um emaranhado de corredores labirínticos que parecem não levar a lugar algum; criaturas grotescas cuja origem e natureza é-nos desconhecida; mistura abjeta entre o biológico e o maquínico, traço que compõe a paisagem de um ambiente que não parece obedecer a nenhum sentido lógico; a inexistência de tutoriais ou de uma HUD que mostre informações sobre o protagonista ou sobre qualquer outra coisa; armas bizarras feitas de um material biomecânico, semelhantes a organismos vivos; a ausência de cutscenes como função narrativa. Cada detalhe pensado para intensificar a experiência de se estar em um lugar completamente desconhecido, alheio a tudo o que nos é familiar. O próprio protagonista, lançado nesse mundo hediondo, é uma incógnita. Seria ele (nós) humano? Seria ele um produto desse mundo anômalo? De nada adianta fazer tais perguntas, o protagonista não possui nenhuma resposta, ele sabe tanto quanto nós, jogadores. Mas, se o Dasein é o ser como abertura, encarando tudo como possibilidade, resta-nos então a tarefa de decifrarmos esse mundo que se apresenta ao protagonista, vivenciá-lo em sua terrível e desnorteante desumanidade. Eis o único modo de construirmos uma narrativa que se aproxime minimamente de uma resposta, sem perder de vista, contudo, que não importa o quanto nos esforcemos em aplicar os rigores da lógica e da racionalidade, jamais encontraremos um sentido último, uma verdade por detrás das aparências. Estamos perdidos e sozinhos em um mundo desprovido de sentido, cuja razão de sua existência nos escapa pelos vãos dos dedos como a areia da praia.
Um emaranhado de corredores labirínticos que parecem não levar a lugar algum; criaturas grotescas cuja origem e natureza é-nos desconhecida; mistura abjeta entre o biológico e o maquínico, traço que compõe a paisagem de um ambiente que não parece obedecer a nenhum sentido lógico; a inexistência de tutoriais ou de uma HUD que mostre informações sobre o protagonista ou sobre qualquer outra coisa; armas bizarras feitas de um material biomecânico, semelhantes a organismos vivos; a ausência de cutscenes como função narrativa. Cada detalhe pensado para intensificar a experiência de se estar em um lugar completamente desconhecido, alheio a tudo o que nos é familiar. O próprio protagonista, lançado nesse mundo hediondo, é uma incógnita. Seria ele (nós) humano? Seria ele um produto desse mundo anômalo? De nada adianta fazer tais perguntas, o protagonista não possui nenhuma resposta, ele sabe tanto quanto nós, jogadores. Mas, se o Dasein é o ser como abertura, encarando tudo como possibilidade, resta-nos então a tarefa de decifrarmos esse mundo que se apresenta ao protagonista, vivenciá-lo em sua terrível e desnorteante desumanidade. Eis o único modo de construirmos uma narrativa que se aproxime minimamente de uma resposta, sem perder de vista, contudo, que não importa o quanto nos esforcemos em aplicar os rigores da lógica e da racionalidade, jamais encontraremos um sentido último, uma verdade por detrás das aparências. Estamos perdidos e sozinhos em um mundo desprovido de sentido, cuja razão de sua existência nos escapa pelos vãos dos dedos como a areia da praia.
Scorn - Screenshot
Um sentimento constante ao perambular pelos corredores de Scorn é o de estar perdido, sem um rumo certo - sentimento esse intensificado pela ausência de um indicador de objetivos ou missões -, mas o que num primeiro momento parece uma falha de level design, em realidade, é um efeito esperado. Sentir-se perdido, portanto, não é apenas um conceito abstrato presente na filosofia de design, resgatado da obra de Giger, mas uma experiência. Scorn é ambicioso e corajoso por propor ao jogador, graças à imersão ativa que os jogos eletrônicos permitem, viver efetivamente a experiência-limite do encontro com o Outro. Encontro esse que, apesar de aterrorizante, não deixa de ser, quer admitamos ou não, fascinante e provocador. Resta sabermos se os desenvolvedores estarão à altura da empreitada. O que iremos descobrir quando o game for finalmente lançado. Seu lançamento estava previsto para o final do ano passado, mas os desenvolvedores decidiram adiá-lo para este ano, 2018. Scorn é um projeto independente, claramente apaixonado, que pode renovar a cena do horror nos jogos eletrônicos, tão saturada pelo excesso de títulos do gênero que pegam onda com a moda.
Scorn - Screenshot
[youtube]https://www.youtube.com/watch?v=BKTkCa5nB_8[/youtube]
Referência Bibliográfica:
CONTRERAS, C.R.: Ontología y epistemología cyborg: representaciones emergentes del vínculo orgánico entre el hombre y la naturaleza in Revista Iberoamericana de ciencia, tecnología y sociedad, Vol. 7, No. 19, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, jul/dic 2012.
GIGER, H.R.: Necronomicon. Edition C: Zürich, 1984.
CONTRERAS, C.R.: Ontología y epistemología cyborg: representaciones emergentes del vínculo orgánico entre el hombre y la naturaleza in Revista Iberoamericana de ciencia, tecnología y sociedad, Vol. 7, No. 19, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, jul/dic 2012.
GIGER, H.R.: Necronomicon. Edition C: Zürich, 1984.