PRISCILA
Priscila é uma aspirante a atriz. Desde criança ela foi fascinada com as artes cênicas. Seu maior sonho era estrelar uma peça inesquecível que a tornaria a atriz mais famosa do mundo e seu nome estaria eternizado nos jornais. Esse era o sonho que lhe movia todos os dias.
A atriz ainda era pouco conhecida, mas tinha apenas vinte e dois anos de idade e já era detentora de uma beleza descomunal. Seus longos e encaracolados fios cor de mel eram invejados por suas rivais, seus olhos caramelizados eram tão doces que faziam os homens suspirarem com o simples pensar do gosto da sua boca.
Além de bela, era inteligente. Tem um raro dom de conseguir se conectar intimamente com as suas personagens e uma assustadora capacidade de memorização de falas que foge da compreensão humana.
Priscila é uma atriz completa. Contudo, apesar de todas as suas qualidades, ela ainda não detinha tanto destaque no ramo que escolhera trilhar.
Esse dia pode ser diferente. Esse dia o ar estava um tanto diferente.
Ela acorda, com sua camisola azul semitransparente, e caminha pelo claustrofóbico apartamento que consegue pagar com seus parcos recursos no centro da metrópole. Uma cena bastante sensual, os raios de luz do início do dia invadem a janela em busca do seu corpo e lhe abraça, trazendo um charme único para aquela cena.
Andou pelo seu apartamento como se pisasse sobre nuvens: um andar sensual e delicado. Um andar confiante de quem sabe o que quer, e hoje ela queria o mundo. Porém, pela manhã, se contentava com o escovar de dentes.
Chegando no banheiro, ela enche um copo de água, empunha sua escova de dentes um tanto gasta e coloca, com cautela, o creme dental.
Enquanto escova os seus dentes, com sua mão esquerda ela ergue o roteiro que precisa decorar até chegar no teatro e se prostra próxima à janela.
– Uma nova peça. Será um romance? Será uma tragédia? Mal posso esperar para ver qual será o meu personagem dessa vez – pensou em voz alta enquanto folheava o roteiro encadernado e com um grande sorriso no rosto.
– Parece um romance. Não, não, esses diálogos são muito superficiais para ter algum romance nessa peça, parece mais uma comédia. Essa cena na cafeteria só pode ser uma comédia – pensou com um sorriso em seus lábios enquanto escovava suavemente a sua boca.
– Não tem título? Esse roteiro está incompleto, ou, pelo menos parece. Não tem nome do autor, não tem título e só tem o primeiro ato. As falas parecem estar cortadas pela metade e só tem as minhas falas. Será que isso é uma piada?
A aspirante a atriz vai até a papelada que assinou no dia anterior e que está espalhada sobre a sua mesa. – Será possível que não diz o nome da peça nem no contrato? Impossível, deve haver alguma menção.
– Cláusula de fidelidade... companhia de teatro... cadê o nome da peça? Cadê? – Após correr seus olhos pelas trinta e duas páginas do contrato, desistiu e colocou novamente aquele maço de folhas sobre a mesa. Instantaneamente seus olhos foram atraídos pelo cartaz da peça com a chamada “a peça da sua vida”.
– A peça da minha vida é? A peça da minha vida não tem nome – riu para si.
A metrópole acordava sempre em tons de cinza, mas o caminhar de Priscila coloria a cidade com os tons da sua beleza e alegria. Ela é uma daquelas pessoas inesquecíveis que conseguem unir uma inocência infantil com um olhar de uma mulher madura. Um olhar que cativa e seduz sem ser vulgar.
Todos daquela rua sabiam quem ela era, e muitos iam ao teatro apenas para lhe ver. Uma longa rua de pedra com inúmeras barracas comerciais era o que ligava o seu apartamento ao teatro, um caminho que era percorrido por ela todos os dias equilibrando-se nos sapatos de salto alto, seu favorito.
[***]
Chegando ao teatro, ela se dirige até a sala do diretor, cumprimentando todos os atores pelo caminho, novatos e veteranos, e até mesmo aqueles que viram a cara na direção oposta.
– Acho que o meu texto está incompleto, Sr. Bernardino – diz a jovem com um tom de dúvida e com suas bochechas cheias de ar, o que fazia inconsciente e com frequência quando algo não era do seu agrado.
– Acho que você não leu direito, queridinha, ou isso é só uma desculpa para que você faça mais uma de suas ceninhas de improviso em palco. Não é? – O diretor era um homem baixo, careca e com um grande ódio por tudo que era feliz e belo. Um sujeito extremamente controlador e que não aceitava nada diferente do que ele pensava, mas também era impulsivo e muitas vezes falava antes mesmo de pensar.
– Olhe aqui! Está incompleto. Nem mesmo os personagens têm nomes.
– Deixe-me ver! – disse o diretor enquanto arrancava bruscamente o script das mãos da atriz. – Ah! Essa peça. É um roteirista novo. Esse é o jeito que ele escreve – falou deixando de lado o tom sério de costume.
– Como assim? Como eu vou saber com quem irei contracenar? Olhe aqui, está incompleto! – retrucou com uma certa impaciência no olhar. Em seguida, observando o olhar de indiferença do diretor, ela mordeu os dentes e deixou passar um som abafado de ira.
Esta cena deu um tom de alegria ao carrancudo olhar do diretor, como se as suas sobrancelhas comemorassem uma pequena vitória contra a alegria.
– Não posso fazer nada, esse é um daqueles escritores egomaníacos que se acha O melhor escritor do mundo. Além disso, ele é um tanto paranoico e vai liberar o script aos poucos. Ele deve achar que alguém vai roubar a sua “grande obra”.
Percebendo que não poderia fazer nada, a atriz suspirou, abaixou a sua cabeça e perguntou em uma voz tristonha – Qual o nome da minha personagem? Eu posso saber pelo menos isso?
– Priscila!
Ouvindo o seu nome ser dito pelo diretor de uma forma seca, ela sente um calafrio e ergue a sua cabeça lentamente para olhar nos olhos do diretor. Essa troca de olhares dura alguns segundos até que a atriz decide quebrar o silêncio: – Sim?
– A sua personagem.
– O que tem a minha personagem?
– Priscila é o nome da sua personagem.
Após ouvir aquelas palavras, um novo sinal de vitória contra a alegria é perceptível no sorriso sarcástico do diretor enquanto a atriz é tomada por um surto nervoso de riso e constrangimento.
– A minha personagem vai se chamar Priscila?
– Sim! Agora vá estudar o seu roteiro e depois me diga se você gostou.
Em seu camarim, olhando o roteiro, ela pensa: – Como eu ia saber que a minha personagem tinha o mesmo nome que eu. Está escrito no script? Sim, está. Mas eu pensei que era para eu saber o que eu deveria dizer, não que a minha personagem ia ter o mesmo nome que eu.
A garota deixa seus ombros caírem e solta um suave suspiro, voltando seus olhos para o espelho do camarim, em especial, os recortes de jornais que colocara das grandes estrelas para manter a sua motivação.
Olhando para aquelas imagens, ela se perde em seus próprios pensamentos. Sonhando que é uma grande estrela que está prestes a receber o seu tão merecido prêmio. Assim, ela consegue recuperar a autoconfiança e a motivação para encarar cada papel como o último papel da sua vida, aquele que a fará ganhar seus prêmios.
– Vejamos... Essa personagem é uma mulher solteira, alegre e esperta. Não parece ser um grande papel, mas vamos ver como é que a peça irá terminar – pensa a atriz vociferando uma risada maquiavélica enquanto procura nas ultimas páginas pelo final da peça, porém, em vão.
– Ah, que saco, cadê o final da peça! – deixou um grito escapar de sua boca, o que atraiu a atenção de um outro ator, Vincent.
– O que houve? Não gostou da sua personagem?
– Vincent? Não, não é isso. Só estou chateada porque me deram um script incompleto. Diga-me, como eu poderei interpretar uma personagem se eu nem mesmo sei como é o desenrolar da trama?
– Olha só! Estamos na mesma peça. Mas a minha está completa, veja! – disse enquanto mostrava parte do seu script para a atriz.
Ao ouvir aquilo, ela avança sobre o script de Vincent e vai até a última página. Seu coração acelera ao ver as palavras “ato final”. Ela folheia o último ato do roteiro do seu colega de trás para frente em busca da aparição da sua personagem, mas não encontra sequer uma menção dela.
– Meu deus! Isso deve ser algum tipo de pegadinha para me deixar louca!
Novamente a atriz estava com suas bochechas cheias de ar, o que trouxe um ar cômico para o seu desespero e arrancou algumas risadas do amigo. Percebendo isso, ambos começam a gargalhar.
Nesse ritmo descontraído, a manhã inteira daquele dia passou.
[***]
Priscila decidiu almoçar em um restaurante e café perto do teatro. Um lugar com toque rústico e elitizado, mas que dava generosos descontos para os atores do teatro. Entre uma garfada e outra do seu prato de salada com frango, a atriz observa o diretor no balcão conversando com um sujeito desconhecido: um homem de idade avançada; meio calvo; pele negra; roupas simples; e de óculos escuros.
– Queria ser uma mosca para ouvir o que eles estão conversando. Mosca não, uma abelha, assim eu aproveitava e dava um beliscão bem forte no diretor.
A conversa começou a ficar acalorada entre o diretor e o homem e a atriz decidiu se aproximar sorrateiramente para sanar sua crescente curiosidade, mas estava constrangida de ser pega no ato. Na sua mesa viu uma xícara vazia de café, o álibi perfeito para criar coragem e ir até o balcão.
Cada passo que dava em direção ao balcão, seu coração acelerava, como se estivesse fazendo algo proibido e a qualquer momento pudesse ser descoberta.
A conversa ainda era inaudível, mas a atriz ouviu algumas palavras ditas com maior empolgação pelos interlocutores e, entre elas, o seu nome, o que lhe deixa ainda mais nervosa e curiosa em saber qual o assunto.
– Café? – diz a atendente do restaurante, interceptando o caminho da atriz.
– Não, tudo bem, eu pego ali no balcão.
A atendente parecia ser um polvo lhe envolvendo nos seus tentáculos, e quanto mais a atriz tentava se desvencilhar, mas difícil era contornar aquela situação – Esse café é novo, acabei de passar, não vai querer mesmo?
Claramente desconcertada e com vontade de esgana-la, Priscila olha por cima dos ombros da mulher e vislumbra o diretor olhando em sua direção com uma cara de poucos amigos.
– Tudo bem, aceito mais uma xícara.
A atendente encheu o copo com um grande sorriso no rosto. – Você é uma das atrizes do teatro, não é?
– Sim, sou mesmo. Você vai muito ao teatro? – Quis parecer amigável, porém, mais do que tudo, queria se esconder dos olhos do diretor.
– Nossa, você é muito corajosa. Eu queria ser uma atriz também, mas meu marido, Charles, nunca iria aceitar.
Priscila achou que deveria dizer alguma palavra de incentivo para a mulher, mas a esgrima contra o olhar do diretor, utilizando aquela atendente como escudo, fazia parecer que estava apurada para ir ao banheiro.
Observando intrigado com a estranha movimentação, o diretor sai do banco e caminha naquela direção.
Desesperada, a atriz agarra a atendente pelos ombros, olha diretamente nos seus olhos e diz: – Vejo bastante potencial em você! Acho que você deveria falar com o diretor, ele está logo atrás de você. Ele é uma pessoa bastante educada e atenciosa, não deixe o jeito turrão dele te assustar.
– Jura? Você acha que eu tenho futuro!
– Claro! Mas você precisa falar com ele agora. Como dizem, um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Vai lá, dê o seu melhor!
A atendente, cheia de si, resolve interceptar o diretor e, com um sorriso capaz de mostrar todos os dentes da boca, diz: – Café?
Era a oportunidade perfeita para sair de mansinho. Enquanto a atendente envolvia o diretor com os seus tentáculos, a atriz saiu de lá. O seu andar elegante de estrela do cinema deu vez a um andar sorrateiro de desenho animado. Uma atitude cômica que não passou desapercebida pelos demais frequentadores do lugar, atraindo olhares e risos.
Porém, ela saiu, para ela, isso era o que importava.
Quando o diretor lhe questionasse mais tarde sobre sua possível intromissão, ela apenas teria que interpretar uma das suas personagens e dizer com a cara mais assustada possível: – Eu? Você deve estar me confundido, Sr. Bernardino.
O simples imaginar da cena já atraia risos involuntários:– Ele vai querer me matar de tanta raiva, mal posso esperar para ver a sua cara.
Uma vez na rua, ela caminha graciosamente e animada até o teatro.
[***]
Retornando ao teatro, Priscila vai em direção ao seu camarim. Ainda era cedo, por isso o teatro estava vazio.
– O Sr. Bernardino não vai se importar se eu der uma espiadinha nos roteiros antes que ele chegue, não é? Afinal, que mal pode fazer uma espiadinha.
No caminho, ela desvia para a sala do diretor, local onde os roteiros ficam guardados. A porta estava trancada, mas a atriz sabia aonde estava a chave reserva: debaixo do tapete.
Era cômico o quão previsível era o diretor. Ele era um sujeito pragmático, mas de memória fraca, por isso ele sempre deixava anotações e objetos nos lugares óbvios para não esquecer.
A sala era um lugar único. Era o perfeito equilíbrio entre ordem e caos: as folhas se amontoavam em pilhas sobre as mesas e no chão; mas estavam todas organizadas por ordem cronológica. O menor vento naquela sala seria capaz de embaralhar todos os documentos de uma forma impossível de ser organizada.
Ainda assim, a atriz resolveu entrar naquela sala em busca da versão final do roteiro da peça. Buscou sobre os papéis e não encontrou. Eram papeladas administrativas com números, nomes, endereços e diversas outras informações que não eram importantes naquele momento.
A jovem continuou procurando e encontra, preso em baixo da cadeira do diretor, um pequeno papel escrito uma ordem numeral. Logo imaginou que fosse o cofre – Será que ele guardou o roteiro no cofre?
Instigada e em busca de respostas, ela vai até o cofre atrás do quadro, o que não era nenhum mistério para os trabalhadores do teatro.
Com a senha ela consegue abrir o cofre. Dentro do cofre há um grande livro de capa de couro. Parecia um livro muito antigo, mas os dizeres na capa do livro eram inconfundíveis “a peça da sua vida”.
Preenchida com entusiasmo, ela resolve abrir o livro.
– Esse deve ser o roteiro – disse para si mesma com um sorriso no rosto.
O livro era de aparência antiga e totalmente escrito à mão. Suas bordas eram costuradas com três finas linhas e sua capa possuía três buracos distribuídos em uma formação triangular.
Nas primeiras páginas no livro estava um índice de personagens, todos organizados por ordem alfabética, exatamente como o diretor fazia com suas anotações. Curiosa, a menina folheou rapidamente para a página da sua personagem. A caligrafia desta história era inconfundível. Era do diretor.
A última parte do capítulo de sua personagem era: “Priscila, após apresentar a peça da sua vida se tornou a atriz mais famosa e reconhecida internacional, casando-se com um homem bom e vivendo feliz para sempre”.
– Nossa, que clichê – pensou para si. – O escritor faz todo esse mistério por um final simples como esse. É um final muito bonito, concordo, mas poderia ser mais dramático. Como eu poderei apresentar as minhas habilidades como atriz em um final tão simples como esse?
Ela fica durante os próximos minutos sentada com o livro em suas mãos, folheando e imaginando como poderia criar um clímax melhor para a sua personagem.
Examinando as páginas anteriores ela observa diversos trechos de caneta. Seus olhos são atraídos para um trecho, em especial, em que está escrito: “Priscila se apaixona pelo diretor do teatro e vive feliz para sempre”.
Ao ler esse trecho, enche suas bochechas de ar e continua lendo os demais trechos riscados. Vários desses trechos com o mesmo desfecho, apenas com palavras e situações diferentes, porém todos riscados.
– Será que esse tal de escritor misterioso é o Sr. Bernardino?
Priscila coça o queixo. Põem a mão em sua cabeça, olha a história de alguns personagens e se espanta ao encontrar o personagem “Bernardino” no qual não havia qualquer trecho escrito no livro.
Após pensar por bastante tempo, a atriz decide estender a sua mão e pegar uma caneta para reescrever o final do roteiro da peça, dando ênfase em toda a dramaturgia que tanto gosta.
Entre os trechos reescritos pela atriz, ela coloca Bernardino no papel de vilão da história, colocando-o como algoz do assassinato da protagonista, Priscila, que morre nos braços do seu amado Vincent pouco antes dele retirar a sua própria vida por não aguentar viver em um mundo onde sua amada não mais existe.
– Pronto! Sempre achei que o pobre Vincent merecia um papel de destaque. Agora esse papel é digno dele. Queria tanto ver a cara do Sr. Bernardino quando ele achar essas alterações – pensou ela antes de fechar o livro e colocar ele novamente dentro do cofre.
Após a sua pegadinha contra o diretor do teatro, Priscila retorna ao camarim como se nada tivesse acontecido. Faltava algumas horas para começar as apresentações. Todas as suas falas já estavam decoradas ou, pelo menos, as falas das cenas que ela preferiu não improvisar.
Jogou o pequeno lembrete com a senha do cofre na lareira e se deitou pela última vez na cama do seu camarim, sem cogitar no rumo que sua vida tomaria nas próximas horas. Repetindo o seu mantra: – trate essa personagem como a última personagem da sua vida.
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