🤔 Para Refletir : "Quando um mar de ideias aparecer, pesque todas com a rede e faça o banquete" - Samuel Augusto

- REQUIEM -

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  Era uma noite limpa e a lua no céu brilhava como que tomada por um fogo branco e puro. Num beco de iluminação parca um homem agonizava, sentado ao pé de uma enorme parede de um edifício velho abandonado. À sua volta havia uma enorme poça feita pelo sangue que escorria de um ferimento mortal em seu abdômen. Seu sangue, que parecia brilhar sob a luz do luar, lavava a calçada semi-iluminada daquele beco úmido e frio. Estava só. Acreditava vivamente que alguém por ali passaria e o socorreria. Aferrava-se a essa crença e assim podia expulsar d sua mente perturbada pela dor e pela perda gradual de sangue a ideia de uma morte iminente.
- Como posso acabar assim?
  Ele falava quase aos sussurros, uma vez que com o sangue esvaía-se também sua força.
- É claro que me encontrarão - continuou - e me levarão ao hospital.
  Era incapaz de admitir para si que um fim sem virtude e glória se aproximava; um fim digno de uma mosca e não de um homem. Porque o homem acredita exasperadamente que ocupa um lugar especial no Universo, como um centro de gravidade, e que tudo o que lhe acontece deve ser como a prova cabal de sua grandeza. Nada no homem é pequeno, e nada no universo é mais radiante do que o homem. Cada ato, no homem, é como o ato de um deus. O homem é sublime.
  Não muito longe dali alguém tocava um violino choroso e triste. Era, pois, o estranho e insólito matrimônio entre a música e a morte. A música que saía do violino dava ao infortúnio daquele pobre homem uma dramaticidade notável, capaz mesmo de comover. Enquanto a ouvia, o homem podia esquecer-se de si. Por um momento não sentiu mais dor e poder-se-ia dizer que um pouco de prazer penetrou em seu corpo abandonado. A música rompia com o silêncio gélido do beco imundo e devolvia ao homem um pouco de sua verdadeira humanidade: morrer. Mas, até que ponto? Não foi o homem seduzido o suficiente pela finitude, ela foi para ele apenas um vislumbre; e logo retornou ao seu estado anterior de penúria:
- Estou só. Lamentou.
  Olhou para os lados, esperando avistar alguém que tivesse decidido por ali passar. Mas só havia ele mesmo, não se ouvia sequer o piar de uma coruja que nas redondezas tivesse feito sua morada. Começava outra vez a temer a morte que o espreitava. Em seu coração ainda ardia uma pequena chama de esperança. Mas, por quanto tempo tal chama ainda arderia?
  À sua esquerda, no chão, viu seu revólver. Pegou-o com dificuldade. A mão tremia, sua coordenação via-se cada vez mais comprometida pela fraqueza progressiva.
- Descarregado. De que me adianta um revólver descarregado?
  Pela primeira vez considerou a possibilidade de acabar por sua própria conta com seu sofrimento.
  Então, num movimento involuntário enfiou sua mão direita no bolso do casaco fino que vestia e sentiu que havia tocado e em algo; retirou o objeto desconhecido do bolso, tratava-se de um único projétil. Contemplou por alguns instantes o objeto ensanguentado e o colocou no revólver. Observou-o por longo tempo.
- Só preciso mirar e apertar o gatilho... apertar o gatilho.... apertar o gatilho.
  Repetiu o mantra horripilante na tentativa de, na repetição, adquirir a coragem necessária para o ato.
  Começava a refletir sobre si mesmo e a concluir que desde o início cometera um grave erro. Confiou que algum dia sua vida faria sentido. Tal confiança vinha da esperança de dias claros de sol radiante e nuvens de algodão, uma esperança de que um rei deveria ser feliz. Mas, agora, apenas agonizava e começava a pensar que se tivesse desde o início pensando em suicidar-se, teria evitado toda dor e sofrimento que comprimia seu peito: o homem deve perecer. O suicídio é dar cabo homem não como organismo, espécie, biologia, mas como ser. Sofria, portanto, e sabia que a causa de seu sofrimento era a esperança que ainda residia em si. Foi aí que aquela pequena chama de esperança que ardia em seu coração se apagou e ele pôde, enfim, fazer o que era necessário: morrer. A coragem invadiu seu espírito e restabeleceu sua força.
- O último movimento. Disse.
  Sua voz era suave e calma. Sua mão já não tremia como outrora, segurava firme o revólver. Levou o revólver até a têmpora e segurando- ficou enquanto preparava-se. Ao longe ainda se ouvia o violino choroso.
- Será como na Abertura 1812.
  E pela primeira vez sorriu desde que sua agonia começara. Uma estranha alegria o invadira e o fazia gargalhar. A morte o havia inundado de uma sensação destroçante e maravilhosa. Balançava a cabeça como se estivesse marcando o tempo de uma música. A mão direita balançava como a reger uma orquestra imaginária. E em meio à euforia que o contagiava apertou o gatilho do revólver que contra sua cabeça tão fortemente apontava. O som do disparo preciso ecoara pela cidade. Sua cabeça, ensanguentada, tombou para o lado; seu braço desabou; seu corpo abandonou-se a si mesmo na calçada. O revólver ainda estava em sua mão.
  Morto.
  O violino cessara, nenhuma nota soava e a cidade agora se aquietava. O homem se foi, evadiu-se.
  Um cão latiu ao longe.​


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Ilustração feita pelo artista Lucas Fier. Ela foi feita exclusivamente para esse conto e faz parte de uma mini-coletânea de contos, em forma de zine, intitulada "Bestiário". Esse zine foi produzido para um evento de literatura independente em Curitiba. Vocês podem conferir os trabalhos dele em sua conta no Instagram: https://www.instagram.com/lucasfier/
 
Que texto! Representa bem o termo estoicista memento mori. Também pude interpretar que a "euforia" que o homem sentiu nos seus últimos segundos de vida pode ser explicada pela razão de ser o único momento, em meio a tanta dor e sofrimento, em que ele assumiu o controle. De resto, tudo não passava de uma vaga esperança de que um milagre surgisse. Como se, ainda que sua morte fosse certa, sua alma ainda clamasse por: memento vivere.
 
Eliyud comentou:
Que texto! É como se resumisse bem o termo estoicista memento mori. Também pude interpretar que a "euforia" que o homem sentiu nos seus últimos segundos de vida pode ser explicada pela razão de ser o único momento, em meio a tanta dor e sofrimento, em que ele assumiu o controle. De resto, tudo não passava de uma vaga esperança de que um milagre surgisse. Como se, ainda que sua morte fosse certa, sua alma ainda clamasse por: memento vivere.

  Sim, quando escrevi esse texto, meu intuito era retratar um homem vendo-se confrontado com sua própria finitude, sendo a morte a única verdade e certeza, o único destino real em meio ao transitório. O gesto final - o suicídio - é a constatação e aceitação, por parte da personagem, desse fato. Apesar do tom pessimista, schopenhauriano até, é apenas quando a personagem se dá conta de sua impotência que a ação verdadeiramente livre surge na forma de amor fati - o fatalismo como campo da liberdade. Negar o destino - a morte - significa viver uma ilusão e, portanto, não ser livre.​
 
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