Era uma noite quente de verão em Los Angeles. O vento soprava forte de rua a rua e fez-se presente por seu som inconfundível. Eu estava sentado dentro de um bar sombrio e suspeito na parte pobre da cidade, bebendo um chope terrível e assistindo a pequena televisão o dono tinha posto na parede. Sentada atrás de mim estava Mila, minha amiga de infância. Mila tinha cabelos negros que brilhavam púrpura na luz e olhos frios azuis que sempre pareciam encarar-me até a alma. Ela tinha proporções pequenas e lindas que estavam à mostra em sua saia curta e regata. Ela estava debruçada sobre a mesa enquanto bebia sua cerveja em silêncio. Seus olhos eram tristes e ela não dizia muito. Toquei em sua mão e ela pulou de seu assento e me deu um olhar apavorado, mas sorriu de leve quando me viu e colocou sua mão sobre a minha. A televisão estava passando um show sobre C.R.P., ou Cirurgia de Redesignação de Passado. O homem no show falou sobre como a cirurgia, se feita demais, podia causar dano irreparável ao paciente. Cutuquei Mila no ombro e apontei para a televisão, mas ela deu de ombros e continuou bebendo.
— Você tem certeza que quer fazer isso, meu amor? — acariciei o verso da sua mão.
— Não me chame de “amor,” John. Eu te amo como um irmão, não dessa forma. Entendeu? — Eu não pude conter um suspiro.
— Compreendo. Ainda acho que vai me amar um dia, contudo, mas aí pode ser tarde demais.
— Não me importo de tomar esse risco — ela deu uma gargalhada.
— Mas ainda assim, acho que você deveria repensar essa situação. Fazer algo assim me parece apressado.
Ela me deu um olhar triste e tirou a mão de minhas carícias.
— Eu preciso fazer isso, John. Por mim — eu suspirei e desisti de tentar mudar sua mente.
Bebemos mais duas cervejas e seguimos nossos rumos separados. Comecei a andar para casa num paço devagar para não desperdiçar aquela noite linda estrelada em Los Angeles. Estava quente e eu podia sentir minha testa suando bastante. A limpei com meu braço e segui em frente para casa. Cheguei num cruzamento e senti um vento frio soprando do mar e subitamente um alívio tomou conta de mim. Soltei um suspiro e cheguei em casa. Chequei meu relógio, não era tão tarde depois que disse adeus a Mila. Entrei no meu apartamento e joguei minhas coisas na mesa. Meu apartamento não era grande; de fato era bem pequeno. Não tinha quarto, ao invés tendo uma cama dobrável na parede e sem sequer ter uma cozinha separada, com uma copa adjacente à sala de estar com apenas um balcão separando-as. Havia um pequeno sofá no meio da sala de estar voltado à parede oposta da cozinha e uma televisão de tamanho médio em frente dele com uma mesa de centro no meio. À esquerda do sofá havia um espaço vazio com duas mesas de cabeceira perto dos armários: era ali onde ficava minha cama dobrável. À direita da cama ficava o banheiro, que era pequeno e tinha apenas um chuveiro quadrado sem banheira. Me joguei no sofá e peguei o álbum de fotos que mantinha na mesa de centro. Tentando me distrair, comecei a olhar pelas fotos de Mila e eu.
Mila era cinco anos mais jovem que eu. A conheci desde que ela tinha um ano de idade, mas assim que ela virou adolescente, ela se tornou a mulher mais linda que eu já vi na minha vida. Eu comecei a amá-la quando tinha vinte anos de idade. Tinha certeza que, um dia, ela seria minha esposa. Se ao menos ela pensasse o mesmo… Suspirei e coloquei o álbum de volta na mesa e liguei a televisão. Comecei a assistir um show bobo de comédia conforme lentamente peguei no sono no sofá, sonhando com minha querida Mila.
Mila parecia nervosa sentada em sua cadeira. Ela olhava de televisão em televisão desesperadamente tentando achar algo familiar a ela, mas a única coisa familiar naquele quarto era eu. O quarto era circular e alto, com telas cobrindo todo centímetro de parede. O cirurgião chegou no quarto e começou a preparar todos os materiais necessários para a cirurgia depois de nos dar um “bom dia.” Segurei a mão fria e trêmula de Mila e ela apertou a minha conforme seu medo aumentava.
— Você tem certeza que quer seguir em frente com isso? — perguntei. Ela apertou minha mão forte e suspirou pesadamente.
— Sim, tenho certeza. Obrigado por ficar aqui por mim, John.
— Eu apareceria onde quer que fosse por você, querida — eu disse e sorri para ela. Ela pareceu se acalmar um pouco e largou de minha mão.
— Estou pronto — ela disse num tom autoritário e acenou para o cirurgião.
O cirurgião ligou a máquina e Mila lentamente caiu no sono na cadeira operatória. Andei até a área operatória e olhei por cima do cirurgião conforme ele começou o processo de deletar memórias ruins e traumáticas de Mila e de criar memórias novas e mais prazerosas. Assisti todas elas sendo destrambelhadas nas televisões ao nosso redor. Elas foram misturadas, excluídas e inventadas onde necessário e preenchidas onde havia material que podia ser reutilizado. O cirurgião era tanto artista quanto doutor, e seu trabalho era admirável. Eu vi o ponto de vista de Mila quando eu a convidei para um encontro. Ela me disse não, e então eu vi seu coração disparar conforme eu agarrei seu braço e a coloquei contra a parede.
— Você pode deletar aquela memória? — perguntei ao cirurgião. Ele a olhou de relance e sorriu para mim.
— Sem problemas — com um clique de seu mouse, ele a deletou num instante.
— Obrigado — sorri, me sentindo esquisito.
— Você é o marido dele, então?
— Não! — soltei uma risada — Digo, queria ser, mas ela não… ah…
Parei de falar. Ele me fitou com uma sobrancelha erguida.
— Ela não… me quer. Nós só somos amigos.
Ele acariciou a testa e me olhou como se eu fosse estúpido.
— Você quer ser o marido dela? Eu posso fazer isso acontecer.
— Você quer dizer fazer ela acreditar que é casada comigo? Isso parece doentio!
— Se não quer, tudo bem. Mas é um mundo bem selvagem por aí. Ela não tem alguém para protegê-la, para mostrá-la como as coisas são… Ela realmente se beneficiaria de ter alguém que mora com ela e a protege de todos os problemas Consertados enfrentam na sociedade.
Eu suspirei em frustração e coloquei minhas mãos nos meus bolsos.
— Tá. Faça isso.
— Cinco mil dólares.
— Eu não tenho dinheiro comigo — suspirei forte.
— Você pode me pagar depois da cirurgia. Tenho seu celular arquivado, posso te ligar depois. Estamos de acordo? — ele me ofereceu sua mão.
— Temos um acordo — apertei sua mão.
O cirurgião começou a fazer movimentos no painel de controle em sucessão rápida, deletando várias memórias e alterando outras conforme desejava. Quando tudo terminou, tínhamos passado mais de cinco horas na cirurgia, e estávamos exaustos. O cirurgião desligou a máquina e me chamou para ajudar a carregá-la e nós a levamos para meu carro, me deixando para dirigi-la para casa. Ele disse que ela acordaria em cinco horas, mais ou menos. Parei na casa dela e a deitei na cama e então dirigi para casa e rapidamente peguei todas as roupas que conseguia carregar junto com minhas ferramentas de trabalho e as carreguei para a casa dela, que era maior que a minha por um fator de três vezes. Isso feito, me deitei ao seu lado e a abracei conforme esperei para que acordasse. Após mais duas horas, ela lentamente bocejou e abriu os olhos e, conforme me viu, sorriu e me abraçou de volta.
— Bom dia, querida.
— Bom dia — ela respondeu e enterrou o rosto no meu peito.
— Dormiu bem?
— Tive um sonho esquisito sobre você e uma pessoa que nunca encontrei, mas fora isso dormi bem — ela me abraçou mais forte e comecei a acariciar seu cabelo.
— Fico feliz em saber disso.
Sorri para ela e saímos da cama. Ela saiu do quarto primeiro, andando de lugar para lugar desnorteada e então virou para mim e sorriu. Toda essa situação parecia falsa para mim, como se fosse uma imitação de meus sonhos, não uma realização completa. Senti como se a qualquer momento pudesse acordar e perceber que nada disso aconteceu. Só que não era. Era uma realidade inventada, criada por mim e uma pessoa inescrupulosa de Los Angeles. Senti meu estômago revirar e me sentei no sofá para tentar fazer aquilo desaparecer. Mila se sentou ao meu lado e esfregou meus ombros.
— Você está bem? — ela perguntou com um olhar preocupado.
— Estou bem, — acariciei sua mão.
— Tem certeza? Você não está com a cara boa.
Eu tentei repudiar as preocupações dela e a assegurar de que estava bem. Ela voltou ao que estava fazendo antes e, do nada, ela estava sentada no meu colo com uma xícara de café em mãos. Ela me deu a xícara e eu tomei um gole e então ela me beijou, e eu senti como se tivesse morrido e ido para o Céu. Subitamente, ela se jogou no sofá e começou a tossir e fazer sons de como se estivesse prestes a vomitar enquanto fazia gestos de que estava em dor.
— O que houve?!
— Estou bem… estou bem… foi só… não sei. Me senti enojada.
Acariciei seu cabelo e ela se forçou a sorrir para mim. A beijei novamente e ela vomitou no sofá.
— Você não está bem!
— Só… estou um pouco doente, amor. Talvez se eu tirar o dia de folga eu melhore, né?
— Certo, — respondi e a carreguei para a cama. Ela se espalhou pelo colchão enquanto se forçava a sorrir para mim e lentamente caiu no sono conforme eu a assistia. Assim que ela dormiu, a campainha tocou e ela acordou de novo.
— Eu verei quem é. Você fique aqui e descanse.
Andei à sala de estar e abri a porta e vi um policial esperando por mim.
— Olá, você é por acaso parente de Mika Bratovich?
— Acho que você quer dizer Mila?
— Ah, certo, perdão. Você é parente, então?
— Eu sou o Confiado encarregado de tomar conta dela depois de sua C.R.P.
— Ótimo. Gostaria de vê-la, por favor.
— Você é amigo dela?
— Não, de forma alguma. É procedimento policial verificar com todos os Consertados durante seu primeiro mês de reabilitação.
— Achei que isso era só para criminosos redesignados?
— É, mas começamos a fazer para redesignações voluntárias para ter certeza que pessoas não estão tirando vantagem dos Consertados. Eles podem ter um parafuso solto, mas ainda são pessoas, né? — ele sorriu, mas eu não ri.
— Bem, entre, por favor.
Ele entrou no apartamento e julgou tudo sobre ele. Ele não gostou do carpete, da vista ou os móveis e decorações. Ele murmurou algo sobre Consertados e Nascidos-Certos — pessoas que não fizeram um C.R.P. — e andou até o quarto onde Mila estava. Ele a examinou da cabeça aos pés conforme ela fingia — mal — estar dormindo. Ele a cutucou na cabeça e ela fingiu acordar e sorriu para ele.
— Bom dia, — ela disse.
— Bom dia, querida, — ele disse num tom condescendente, — como está se sentindo?
Ela o observou com medo e então se virou para mim. Eu dei de ombros e ela voltou a fitá-lo.
— Estou bem, suponho.
O policial passou por volta de meia hora interrogando Mila. Quando ele se deu por satisfeito com todas as respostas que recebeu, ele se levantou da cama e me deu um olhar severo e saiu do quarto para olhar a sala de estar novamente. Eu fiquei de escolta o tempo todo, com medo que ele decidiria investigar mais. Quando ele finalmente se sentiu satisfeito com tudo que tinha recebido de nós, ele nos deixou em paz e foi embora. Voltei rapidamente para o quarto para conferir como Mila estava. Ela estava deitada no colchão com seus olhos abertos. Ao me ver, sorriu para mim e sentou-se na cama para me cumprimentar.
— Por que a polícia estava aqui, querido? Por que ele acharia que as coisas não estão em ordem por aqui?
— Como que eu vou saber, eu não me mantenho a par da polícia — respondi num tom que tinha certeza ser irreverente. Ela me pareceu irritada com minha resposta, mas não disse nada. Tentou se levantar da cama, mas a interrompi assim que a vi tentar.
— Querido, me deixe levantar. Eu preciso fazer algo, ou vou perder minha sanidade!
— Bem… só não se esforce demais, amor. Não quero que você tenha que ir ao hospital porque trabalhou muito.
Ela se levantou da cama e andou à sala de estar. Desde que me lembro, ela tinha um gingar no seu passo que me deixava hipnotizado, mas tudo que senti desta vez foi nojo de mim mesmo. Sem palavras, ela começou a limpar a casa e eu a ajudei, não querendo me sentir ainda pior. Nós limpamos a casa juntos da melhor maneira que pudemos considerando-se que nenhum de nós sabia o que estávamos fazendo, e nos jogamos no sofá quando terminamos. Mila deitou sua cabeça no meu colo e cerrou os olhos quando meu celular tocou.
— Alô? — perguntei ao som de música alta e carros.
— Alô, John, sou eu. O cirurgião, — ele disse num tom baixo que quase era inaudível por cima dos carros e música.
— Ah… Olá. Suponho que isto seja sobre… — olhei para Mila, que estava sorrindo para mim.
— Sim, é sobre o dinheiro. Escute, venha ao meu apartamento e nós falamos sobre isso, ok?
— Sem problemas, estou a caminho — disse e anotei o endereço depois de dar uma desculpa para Mila.
Cheguei num prédio no distrito afluente de Los Angeles por volta de meia-hora depois. Estacionei meu carro na garagem e entrei na portaria. Subi no elevador e cheguei no apartamento 302. Apertei a campainha e esperei conforme o doutor terminava seus afazeres para me receber. Alguns minutos depois a porta se abriu e um homem vestido de roupão de banho e mais nada exceto um chapéu de caubói. Era o cirurgião. Ele me convidou para entrar e eu entrei hesitando. Me sentia desconfortável naquele apartamento, já que tinha um péssimo pressentimento subindo na minha barriga de estar lá. O cirurgião andou até a cozinha e pegou duas cervejas e me deu uma. A bebi o mais rápido quanto podia para afastar os medos que não paravam de surgir dentro de mim.
— Então, você tem meu dinheiro? — ele esfregou os dedos no dedão. Eu peguei meu talão de cheques e escrevi um cheque de seis mil dólares.
— Seis mil e você nunca me viu, entendido?
Ele pegou o cheque e o inspecionou de perto e, com um sorriso, apertou minha mão.
— Eu nem sei de onde você é, meu amigo.
Suspirei de alívio e pedi outra cerveja. Ele me entregou e bebemos juntos. Antes que eu pudesse sair, vi uma mulher nua com cabelos curvos vermelhos saindo do quarto do cirurgião. Ela andou até a geladeira e pegou um prato de sobras e começou a lambê-lo em frente a mim. O cirurgião olhou onde eu estava encarando e sorriu.
— Essa costumava ser modelo quando veio até mim e pediu por uma C.R.P. barata. A fiz pensar que sou um deus que ela literalmente vive para me servir — ele riu. Senti a necessidade de esmurrá-lo, mas me impedi. Ele podia me prender num segundo.
Houve uma batida forte na porta. O cirurgião andou até ela e a abriu de leve e rapidamente a fechou, xingando. Ele mandou a mulher se esconder e sussurrou para mim:
— É a polícia!
Pude sentir minhas mãos ficando geladas conforme meus nervos perdiam a cabeça. Corri para o quarto do cirurgião e, através de puro instinto, procurei um lugar para me esconder. Não tinha lugar nenhum, mas eu pude ver pela janela que não tinham viaturas de polícia lá fora. Abri a janela e subi para fora, sentindo uma dor terrível nas articulações conforme o fiz. Me pendurei pelos dedos na janela, tentando desesperadamente não cair ou deslizar. Olhei ao redor e vi um cano de dreno d'água ao meu lado. Agarrei-o e lentamente desci por ele em minha tentativa de fuga. Deslizei e quase caí conforme descia, mas consegui me segurar. Finalmente cheguei ao chão e me esguerei até a garagem e entrei no meu carro. Me perguntei se tinham prendido o cirurgião. Por Deus, torci que sim. Mas se o fizeram, isso significa que ele provavelmente os contaria sobre mim. Corri para casa e esperei pelo pior.
Cheguei na casa de Mila e não vi nenhuma viatura. Suspirei de alívio e estacionei em frente ao prédio. Entrei e vi Mila deitada no sofá. Andei até ela e a beijei na testa, e ela lentamente acordou e me beijou, mas logo se sentiu mal e quase vomitou. A fiz sentar-se no sofá mas ela insistiu estar bem. Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, mas era provavelmente culpa daquele cirurgião maldito, tinha certeza disso. Ela me abraçou e nós passamos algum tempo naquele abraço amoroso. Eu queria confessar a verdade para ela, mas a segurei fundo dentro de minha alma. Faria de tudo para não perdê-la para sempre.
Subitamente, ouvi sirenes, e sabia que eram para mim. Eu agarrei os ombros de Mila e corri para a porta com ela mas parei antes de abri-la. Eles iriam bloquear a porta da frente assim que pudessem. Corri com Mila para o quarto e novamente saí pela janela, mas desta vez não tinha cano d'água. Eu me pendurei pelos dedos pelo que parecia ser uma eternidade e pude os sentir lentamente deslizando. Mila estava dentro do quarto gritando para eu entrar, chorando pela minha aparente insanidade, mas eu estava ocupado demais tentando não cair para a ouvir. E então, meu dedo deslizou. E então o outro. E o outro. E o outro. E por fim, eu caí.
Caí pelo que parecia uma eternidade e aterrissei de pé no chão e pude sentir minha perna direita quebrar. Caí no chão e descansei ali tentando meu melhor não gritar. Mila viu a coisa toda e saiu correndo da casa e, de alguma forma evitando a polícia, veio até mim. Ela examinou minha perna e me deu um olhar de puro desespero.
— Estou bem, — a assegurei. Ela me ajudou a levantar e a disse para nos levar ao carro. Ela entrou no lado do motorista e eu no de passageiros e a disse para dirigir o mais longe quanto possível. Vi policiais parando no prédio provavelmente para me prender, mas a esse ponto eu estaria longe. Mila dirigiu para longe nervosa, mas ainda assim ajudando.
— Você está bem? — ela perguntou quando paramos um bom caminho andado na estrada.
— Estou bem, — a assegurei e esfreguei minha perna quebrada. Ela colocou sua mão sobre minha perna e a sentiu para cima e para baixo e me deu uma carranca.
— Está quebrada, meu amor. Precisamos te levar pro hospital.
— Você não precisa, e nós não temos tempo para isso. Só continue dirigindo — sua carranca logo se tornou raiva.
— Não! Eu não vou te deixar ficar machucado e não fazer nada só porque não quer ir pro hospital! Nós vamos e pronto! — ela ligou o motor novamente, e eu comecei a ouvir sirenes.
— Amor, dirija. Aqueles policiais estão atrás de nós, eles não podem nos achar, só dirija para longe e se esconda, nós falamos sobre isso depois!
Mila desligou o motor e me encarou.
- Por que você está sendo perseguido por policiais? O que você fez, John?
— Eu fiz algo errado, Mila… Algo muito errado — eu senti a dor na minha perna aumentar.
— O que você fez? O que quer que tenha sido, eu posso te perdoar, amor, só me diga! — eu suspirei.
— Quando você estava fazendo um C.R.P., eu paguei o cirurgião seis mil dólares para te fazer pensar que sempre me amou — eu confessei. Mila parecia embasbacada. Ela me deu um soco na cara e quase me fez cair pela porta.
— Você o quê!
— Me desculpe, eu só… eu te amo tanto, e você nunca me amou de volta… você pode me perdoar? — perguntei e pude sentir lágrimas se formando nos meus olhos.
Mila encarou suas próprias mãos, e então a mim, e por fim o carro. Num tom sombrio, ela começou a falar.
— Eu quero, — ela começou a chorar — mas eu não sei se isso é porque eu realmente quero ou se é porque você me fez assim quando estava alterando meu cérebro, seu bastardo doentio!
Ela começou a me socar e estapear e eu a deixei fazer conforme queria. Quando ela terminou, ela se jogou na janela e começou a chorar. Eu suspirei.
— Eu entendo… Mas você pode dirigir? Se você não dirigir, eles vão me prender pelo que fiz.
Ela tirou as chaves do carro.
— Não. Você vai ser preso pelo que fez, John. Eu te amo, mas eu preciso de tempo para descobrir se é por causa de mim ou por causa de suas ações e, durante esse tempo, eu não quero te ver — ela disse e secou os olhos com as mãos. Eu acariciei seu cabelo, mas ela estapeou minha mão para longe.
A polícia chegou no carro e um policial bateu no meu vidro. Eu abri a porta e ergui os braços e ele me prendeu e eu finalmente senti minha perna parar de doer conforme perdi a consciência. Acordei não muito tempo depois, me vendo preso numa cama hospitalar. Pelo visto passarei um tempo ali enquanto minha perna melhora.
Eu me ergui diante do juiz sentindo-me o pior que já senti na minha vida. Mila estava ao meu lado, já que ela foi presa sob suspeita de ajudar um foragido da lei. Eu queria segurar sua mão, mas estava algemado e não pude nem tocar nela. O júri me declarou culpado de fraude, mas graças a Deus declararam Mila inocente de ajudar um foragido, considerando-se suas circunstâncias. O juiz olhou para nós dois com tristeza.
— John Elwood, pelo que você fez, você merece a pior punição do mundo. Mas acho que você já sentiu a culpa de tudo que fez. Considerando-se seu caso, te sentencio a uma Cirurgia de Redesignação de Passado. E Mila Bratovich, a corte te oferece uma Cirurgia igual gratuitamente, devido à corrupção de sua anterior.
— Eu aceito… mas por favor, façam com que eu nunca tenha conhecido este homem, — ela disse.
Os guardas nos carregaram por caminhos separados. Eu olhei por cima do ombro para ver se Mila estava bem, e pude vê-la olhando triste para mim.
— Bem-vindo de volta, — disse a nova cirurgiã para mim — desta vez vamos ter certeza que você terá um passado novo imaculado.
Ela sorriu e acariciou meu cabelo. Eu estava preso à cadeira operatória e não podia me mexer, mas eu não queria sequer tentar. Eu só queria começar de novo, para ser perdoado ou esquecido novamente, algo que não senti desde aquele dia fadado anos atrás. Como fui horrível. Como ela lutou e pediu por misericórdia. A cirurgiã ligou a máquina e, por apenas um segundo, eu pude sentir e lembrar de todas as coisas que fiz a Mila, em todas as minhas vidas.
Estava sentado na mesa do bar, bebendo um chope horrível sozinho. Era uma noite quente e sombria de Verão, mas dentro do bar tinha ar-condicionado então eu me sentia confortável. Olhei ao redor do bar já que estava bebendo sozinho e acabei olhando para uma garota curiosa que estava sentada no lado oposto do bar. Ela tinha um lindo cabelo preto que parecia púrpura quando a luz brilhava sobre ele. Seu olhos eram bonitos, e ela estava lendo uma revista sem se preocupar com seus arredores. Ela notou que eu a estava encarando e sorriu para mim, e eu me senti envergonhado. Tomando uma decisão, eu rapidamente terminei meu chope e pedi outro. Precisaria de muita coragem para falar com aquela linda mulher. Me levantei da mesa e andei em passos desajeitados até ela e sorri conforme ela lentamente levantou o olhar de sua revista para mim.
— Olá, — eu disse numa voz esperançosa.
— Olá, — ela disse com um sorriso.
— Você tem certeza que quer fazer isso, meu amor? — acariciei o verso da sua mão.
— Não me chame de “amor,” John. Eu te amo como um irmão, não dessa forma. Entendeu? — Eu não pude conter um suspiro.
— Compreendo. Ainda acho que vai me amar um dia, contudo, mas aí pode ser tarde demais.
— Não me importo de tomar esse risco — ela deu uma gargalhada.
— Mas ainda assim, acho que você deveria repensar essa situação. Fazer algo assim me parece apressado.
Ela me deu um olhar triste e tirou a mão de minhas carícias.
— Eu preciso fazer isso, John. Por mim — eu suspirei e desisti de tentar mudar sua mente.
Bebemos mais duas cervejas e seguimos nossos rumos separados. Comecei a andar para casa num paço devagar para não desperdiçar aquela noite linda estrelada em Los Angeles. Estava quente e eu podia sentir minha testa suando bastante. A limpei com meu braço e segui em frente para casa. Cheguei num cruzamento e senti um vento frio soprando do mar e subitamente um alívio tomou conta de mim. Soltei um suspiro e cheguei em casa. Chequei meu relógio, não era tão tarde depois que disse adeus a Mila. Entrei no meu apartamento e joguei minhas coisas na mesa. Meu apartamento não era grande; de fato era bem pequeno. Não tinha quarto, ao invés tendo uma cama dobrável na parede e sem sequer ter uma cozinha separada, com uma copa adjacente à sala de estar com apenas um balcão separando-as. Havia um pequeno sofá no meio da sala de estar voltado à parede oposta da cozinha e uma televisão de tamanho médio em frente dele com uma mesa de centro no meio. À esquerda do sofá havia um espaço vazio com duas mesas de cabeceira perto dos armários: era ali onde ficava minha cama dobrável. À direita da cama ficava o banheiro, que era pequeno e tinha apenas um chuveiro quadrado sem banheira. Me joguei no sofá e peguei o álbum de fotos que mantinha na mesa de centro. Tentando me distrair, comecei a olhar pelas fotos de Mila e eu.
Mila era cinco anos mais jovem que eu. A conheci desde que ela tinha um ano de idade, mas assim que ela virou adolescente, ela se tornou a mulher mais linda que eu já vi na minha vida. Eu comecei a amá-la quando tinha vinte anos de idade. Tinha certeza que, um dia, ela seria minha esposa. Se ao menos ela pensasse o mesmo… Suspirei e coloquei o álbum de volta na mesa e liguei a televisão. Comecei a assistir um show bobo de comédia conforme lentamente peguei no sono no sofá, sonhando com minha querida Mila.
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Mila parecia nervosa sentada em sua cadeira. Ela olhava de televisão em televisão desesperadamente tentando achar algo familiar a ela, mas a única coisa familiar naquele quarto era eu. O quarto era circular e alto, com telas cobrindo todo centímetro de parede. O cirurgião chegou no quarto e começou a preparar todos os materiais necessários para a cirurgia depois de nos dar um “bom dia.” Segurei a mão fria e trêmula de Mila e ela apertou a minha conforme seu medo aumentava.
— Você tem certeza que quer seguir em frente com isso? — perguntei. Ela apertou minha mão forte e suspirou pesadamente.
— Sim, tenho certeza. Obrigado por ficar aqui por mim, John.
— Eu apareceria onde quer que fosse por você, querida — eu disse e sorri para ela. Ela pareceu se acalmar um pouco e largou de minha mão.
— Estou pronto — ela disse num tom autoritário e acenou para o cirurgião.
O cirurgião ligou a máquina e Mila lentamente caiu no sono na cadeira operatória. Andei até a área operatória e olhei por cima do cirurgião conforme ele começou o processo de deletar memórias ruins e traumáticas de Mila e de criar memórias novas e mais prazerosas. Assisti todas elas sendo destrambelhadas nas televisões ao nosso redor. Elas foram misturadas, excluídas e inventadas onde necessário e preenchidas onde havia material que podia ser reutilizado. O cirurgião era tanto artista quanto doutor, e seu trabalho era admirável. Eu vi o ponto de vista de Mila quando eu a convidei para um encontro. Ela me disse não, e então eu vi seu coração disparar conforme eu agarrei seu braço e a coloquei contra a parede.
— Você pode deletar aquela memória? — perguntei ao cirurgião. Ele a olhou de relance e sorriu para mim.
— Sem problemas — com um clique de seu mouse, ele a deletou num instante.
— Obrigado — sorri, me sentindo esquisito.
— Você é o marido dele, então?
— Não! — soltei uma risada — Digo, queria ser, mas ela não… ah…
Parei de falar. Ele me fitou com uma sobrancelha erguida.
— Ela não… me quer. Nós só somos amigos.
Ele acariciou a testa e me olhou como se eu fosse estúpido.
— Você quer ser o marido dela? Eu posso fazer isso acontecer.
— Você quer dizer fazer ela acreditar que é casada comigo? Isso parece doentio!
— Se não quer, tudo bem. Mas é um mundo bem selvagem por aí. Ela não tem alguém para protegê-la, para mostrá-la como as coisas são… Ela realmente se beneficiaria de ter alguém que mora com ela e a protege de todos os problemas Consertados enfrentam na sociedade.
Eu suspirei em frustração e coloquei minhas mãos nos meus bolsos.
— Tá. Faça isso.
— Cinco mil dólares.
— Eu não tenho dinheiro comigo — suspirei forte.
— Você pode me pagar depois da cirurgia. Tenho seu celular arquivado, posso te ligar depois. Estamos de acordo? — ele me ofereceu sua mão.
— Temos um acordo — apertei sua mão.
O cirurgião começou a fazer movimentos no painel de controle em sucessão rápida, deletando várias memórias e alterando outras conforme desejava. Quando tudo terminou, tínhamos passado mais de cinco horas na cirurgia, e estávamos exaustos. O cirurgião desligou a máquina e me chamou para ajudar a carregá-la e nós a levamos para meu carro, me deixando para dirigi-la para casa. Ele disse que ela acordaria em cinco horas, mais ou menos. Parei na casa dela e a deitei na cama e então dirigi para casa e rapidamente peguei todas as roupas que conseguia carregar junto com minhas ferramentas de trabalho e as carreguei para a casa dela, que era maior que a minha por um fator de três vezes. Isso feito, me deitei ao seu lado e a abracei conforme esperei para que acordasse. Após mais duas horas, ela lentamente bocejou e abriu os olhos e, conforme me viu, sorriu e me abraçou de volta.
— Bom dia, querida.
— Bom dia — ela respondeu e enterrou o rosto no meu peito.
— Dormiu bem?
— Tive um sonho esquisito sobre você e uma pessoa que nunca encontrei, mas fora isso dormi bem — ela me abraçou mais forte e comecei a acariciar seu cabelo.
— Fico feliz em saber disso.
Sorri para ela e saímos da cama. Ela saiu do quarto primeiro, andando de lugar para lugar desnorteada e então virou para mim e sorriu. Toda essa situação parecia falsa para mim, como se fosse uma imitação de meus sonhos, não uma realização completa. Senti como se a qualquer momento pudesse acordar e perceber que nada disso aconteceu. Só que não era. Era uma realidade inventada, criada por mim e uma pessoa inescrupulosa de Los Angeles. Senti meu estômago revirar e me sentei no sofá para tentar fazer aquilo desaparecer. Mila se sentou ao meu lado e esfregou meus ombros.
— Você está bem? — ela perguntou com um olhar preocupado.
— Estou bem, — acariciei sua mão.
— Tem certeza? Você não está com a cara boa.
Eu tentei repudiar as preocupações dela e a assegurar de que estava bem. Ela voltou ao que estava fazendo antes e, do nada, ela estava sentada no meu colo com uma xícara de café em mãos. Ela me deu a xícara e eu tomei um gole e então ela me beijou, e eu senti como se tivesse morrido e ido para o Céu. Subitamente, ela se jogou no sofá e começou a tossir e fazer sons de como se estivesse prestes a vomitar enquanto fazia gestos de que estava em dor.
— O que houve?!
— Estou bem… estou bem… foi só… não sei. Me senti enojada.
Acariciei seu cabelo e ela se forçou a sorrir para mim. A beijei novamente e ela vomitou no sofá.
— Você não está bem!
— Só… estou um pouco doente, amor. Talvez se eu tirar o dia de folga eu melhore, né?
— Certo, — respondi e a carreguei para a cama. Ela se espalhou pelo colchão enquanto se forçava a sorrir para mim e lentamente caiu no sono conforme eu a assistia. Assim que ela dormiu, a campainha tocou e ela acordou de novo.
— Eu verei quem é. Você fique aqui e descanse.
Andei à sala de estar e abri a porta e vi um policial esperando por mim.
— Olá, você é por acaso parente de Mika Bratovich?
— Acho que você quer dizer Mila?
— Ah, certo, perdão. Você é parente, então?
— Eu sou o Confiado encarregado de tomar conta dela depois de sua C.R.P.
— Ótimo. Gostaria de vê-la, por favor.
— Você é amigo dela?
— Não, de forma alguma. É procedimento policial verificar com todos os Consertados durante seu primeiro mês de reabilitação.
— Achei que isso era só para criminosos redesignados?
— É, mas começamos a fazer para redesignações voluntárias para ter certeza que pessoas não estão tirando vantagem dos Consertados. Eles podem ter um parafuso solto, mas ainda são pessoas, né? — ele sorriu, mas eu não ri.
— Bem, entre, por favor.
Ele entrou no apartamento e julgou tudo sobre ele. Ele não gostou do carpete, da vista ou os móveis e decorações. Ele murmurou algo sobre Consertados e Nascidos-Certos — pessoas que não fizeram um C.R.P. — e andou até o quarto onde Mila estava. Ele a examinou da cabeça aos pés conforme ela fingia — mal — estar dormindo. Ele a cutucou na cabeça e ela fingiu acordar e sorriu para ele.
— Bom dia, — ela disse.
— Bom dia, querida, — ele disse num tom condescendente, — como está se sentindo?
Ela o observou com medo e então se virou para mim. Eu dei de ombros e ela voltou a fitá-lo.
— Estou bem, suponho.
O policial passou por volta de meia hora interrogando Mila. Quando ele se deu por satisfeito com todas as respostas que recebeu, ele se levantou da cama e me deu um olhar severo e saiu do quarto para olhar a sala de estar novamente. Eu fiquei de escolta o tempo todo, com medo que ele decidiria investigar mais. Quando ele finalmente se sentiu satisfeito com tudo que tinha recebido de nós, ele nos deixou em paz e foi embora. Voltei rapidamente para o quarto para conferir como Mila estava. Ela estava deitada no colchão com seus olhos abertos. Ao me ver, sorriu para mim e sentou-se na cama para me cumprimentar.
— Por que a polícia estava aqui, querido? Por que ele acharia que as coisas não estão em ordem por aqui?
— Como que eu vou saber, eu não me mantenho a par da polícia — respondi num tom que tinha certeza ser irreverente. Ela me pareceu irritada com minha resposta, mas não disse nada. Tentou se levantar da cama, mas a interrompi assim que a vi tentar.
— Querido, me deixe levantar. Eu preciso fazer algo, ou vou perder minha sanidade!
— Bem… só não se esforce demais, amor. Não quero que você tenha que ir ao hospital porque trabalhou muito.
Ela se levantou da cama e andou à sala de estar. Desde que me lembro, ela tinha um gingar no seu passo que me deixava hipnotizado, mas tudo que senti desta vez foi nojo de mim mesmo. Sem palavras, ela começou a limpar a casa e eu a ajudei, não querendo me sentir ainda pior. Nós limpamos a casa juntos da melhor maneira que pudemos considerando-se que nenhum de nós sabia o que estávamos fazendo, e nos jogamos no sofá quando terminamos. Mila deitou sua cabeça no meu colo e cerrou os olhos quando meu celular tocou.
— Alô? — perguntei ao som de música alta e carros.
— Alô, John, sou eu. O cirurgião, — ele disse num tom baixo que quase era inaudível por cima dos carros e música.
— Ah… Olá. Suponho que isto seja sobre… — olhei para Mila, que estava sorrindo para mim.
— Sim, é sobre o dinheiro. Escute, venha ao meu apartamento e nós falamos sobre isso, ok?
— Sem problemas, estou a caminho — disse e anotei o endereço depois de dar uma desculpa para Mila.
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Cheguei num prédio no distrito afluente de Los Angeles por volta de meia-hora depois. Estacionei meu carro na garagem e entrei na portaria. Subi no elevador e cheguei no apartamento 302. Apertei a campainha e esperei conforme o doutor terminava seus afazeres para me receber. Alguns minutos depois a porta se abriu e um homem vestido de roupão de banho e mais nada exceto um chapéu de caubói. Era o cirurgião. Ele me convidou para entrar e eu entrei hesitando. Me sentia desconfortável naquele apartamento, já que tinha um péssimo pressentimento subindo na minha barriga de estar lá. O cirurgião andou até a cozinha e pegou duas cervejas e me deu uma. A bebi o mais rápido quanto podia para afastar os medos que não paravam de surgir dentro de mim.
— Então, você tem meu dinheiro? — ele esfregou os dedos no dedão. Eu peguei meu talão de cheques e escrevi um cheque de seis mil dólares.
— Seis mil e você nunca me viu, entendido?
Ele pegou o cheque e o inspecionou de perto e, com um sorriso, apertou minha mão.
— Eu nem sei de onde você é, meu amigo.
Suspirei de alívio e pedi outra cerveja. Ele me entregou e bebemos juntos. Antes que eu pudesse sair, vi uma mulher nua com cabelos curvos vermelhos saindo do quarto do cirurgião. Ela andou até a geladeira e pegou um prato de sobras e começou a lambê-lo em frente a mim. O cirurgião olhou onde eu estava encarando e sorriu.
— Essa costumava ser modelo quando veio até mim e pediu por uma C.R.P. barata. A fiz pensar que sou um deus que ela literalmente vive para me servir — ele riu. Senti a necessidade de esmurrá-lo, mas me impedi. Ele podia me prender num segundo.
Houve uma batida forte na porta. O cirurgião andou até ela e a abriu de leve e rapidamente a fechou, xingando. Ele mandou a mulher se esconder e sussurrou para mim:
— É a polícia!
Pude sentir minhas mãos ficando geladas conforme meus nervos perdiam a cabeça. Corri para o quarto do cirurgião e, através de puro instinto, procurei um lugar para me esconder. Não tinha lugar nenhum, mas eu pude ver pela janela que não tinham viaturas de polícia lá fora. Abri a janela e subi para fora, sentindo uma dor terrível nas articulações conforme o fiz. Me pendurei pelos dedos na janela, tentando desesperadamente não cair ou deslizar. Olhei ao redor e vi um cano de dreno d'água ao meu lado. Agarrei-o e lentamente desci por ele em minha tentativa de fuga. Deslizei e quase caí conforme descia, mas consegui me segurar. Finalmente cheguei ao chão e me esguerei até a garagem e entrei no meu carro. Me perguntei se tinham prendido o cirurgião. Por Deus, torci que sim. Mas se o fizeram, isso significa que ele provavelmente os contaria sobre mim. Corri para casa e esperei pelo pior.
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Cheguei na casa de Mila e não vi nenhuma viatura. Suspirei de alívio e estacionei em frente ao prédio. Entrei e vi Mila deitada no sofá. Andei até ela e a beijei na testa, e ela lentamente acordou e me beijou, mas logo se sentiu mal e quase vomitou. A fiz sentar-se no sofá mas ela insistiu estar bem. Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, mas era provavelmente culpa daquele cirurgião maldito, tinha certeza disso. Ela me abraçou e nós passamos algum tempo naquele abraço amoroso. Eu queria confessar a verdade para ela, mas a segurei fundo dentro de minha alma. Faria de tudo para não perdê-la para sempre.
Subitamente, ouvi sirenes, e sabia que eram para mim. Eu agarrei os ombros de Mila e corri para a porta com ela mas parei antes de abri-la. Eles iriam bloquear a porta da frente assim que pudessem. Corri com Mila para o quarto e novamente saí pela janela, mas desta vez não tinha cano d'água. Eu me pendurei pelos dedos pelo que parecia ser uma eternidade e pude os sentir lentamente deslizando. Mila estava dentro do quarto gritando para eu entrar, chorando pela minha aparente insanidade, mas eu estava ocupado demais tentando não cair para a ouvir. E então, meu dedo deslizou. E então o outro. E o outro. E o outro. E por fim, eu caí.
Caí pelo que parecia uma eternidade e aterrissei de pé no chão e pude sentir minha perna direita quebrar. Caí no chão e descansei ali tentando meu melhor não gritar. Mila viu a coisa toda e saiu correndo da casa e, de alguma forma evitando a polícia, veio até mim. Ela examinou minha perna e me deu um olhar de puro desespero.
— Estou bem, — a assegurei. Ela me ajudou a levantar e a disse para nos levar ao carro. Ela entrou no lado do motorista e eu no de passageiros e a disse para dirigir o mais longe quanto possível. Vi policiais parando no prédio provavelmente para me prender, mas a esse ponto eu estaria longe. Mila dirigiu para longe nervosa, mas ainda assim ajudando.
— Você está bem? — ela perguntou quando paramos um bom caminho andado na estrada.
— Estou bem, — a assegurei e esfreguei minha perna quebrada. Ela colocou sua mão sobre minha perna e a sentiu para cima e para baixo e me deu uma carranca.
— Está quebrada, meu amor. Precisamos te levar pro hospital.
— Você não precisa, e nós não temos tempo para isso. Só continue dirigindo — sua carranca logo se tornou raiva.
— Não! Eu não vou te deixar ficar machucado e não fazer nada só porque não quer ir pro hospital! Nós vamos e pronto! — ela ligou o motor novamente, e eu comecei a ouvir sirenes.
— Amor, dirija. Aqueles policiais estão atrás de nós, eles não podem nos achar, só dirija para longe e se esconda, nós falamos sobre isso depois!
Mila desligou o motor e me encarou.
- Por que você está sendo perseguido por policiais? O que você fez, John?
— Eu fiz algo errado, Mila… Algo muito errado — eu senti a dor na minha perna aumentar.
— O que você fez? O que quer que tenha sido, eu posso te perdoar, amor, só me diga! — eu suspirei.
— Quando você estava fazendo um C.R.P., eu paguei o cirurgião seis mil dólares para te fazer pensar que sempre me amou — eu confessei. Mila parecia embasbacada. Ela me deu um soco na cara e quase me fez cair pela porta.
— Você o quê!
— Me desculpe, eu só… eu te amo tanto, e você nunca me amou de volta… você pode me perdoar? — perguntei e pude sentir lágrimas se formando nos meus olhos.
Mila encarou suas próprias mãos, e então a mim, e por fim o carro. Num tom sombrio, ela começou a falar.
— Eu quero, — ela começou a chorar — mas eu não sei se isso é porque eu realmente quero ou se é porque você me fez assim quando estava alterando meu cérebro, seu bastardo doentio!
Ela começou a me socar e estapear e eu a deixei fazer conforme queria. Quando ela terminou, ela se jogou na janela e começou a chorar. Eu suspirei.
— Eu entendo… Mas você pode dirigir? Se você não dirigir, eles vão me prender pelo que fiz.
Ela tirou as chaves do carro.
— Não. Você vai ser preso pelo que fez, John. Eu te amo, mas eu preciso de tempo para descobrir se é por causa de mim ou por causa de suas ações e, durante esse tempo, eu não quero te ver — ela disse e secou os olhos com as mãos. Eu acariciei seu cabelo, mas ela estapeou minha mão para longe.
A polícia chegou no carro e um policial bateu no meu vidro. Eu abri a porta e ergui os braços e ele me prendeu e eu finalmente senti minha perna parar de doer conforme perdi a consciência. Acordei não muito tempo depois, me vendo preso numa cama hospitalar. Pelo visto passarei um tempo ali enquanto minha perna melhora.
Eu me ergui diante do juiz sentindo-me o pior que já senti na minha vida. Mila estava ao meu lado, já que ela foi presa sob suspeita de ajudar um foragido da lei. Eu queria segurar sua mão, mas estava algemado e não pude nem tocar nela. O júri me declarou culpado de fraude, mas graças a Deus declararam Mila inocente de ajudar um foragido, considerando-se suas circunstâncias. O juiz olhou para nós dois com tristeza.
— John Elwood, pelo que você fez, você merece a pior punição do mundo. Mas acho que você já sentiu a culpa de tudo que fez. Considerando-se seu caso, te sentencio a uma Cirurgia de Redesignação de Passado. E Mila Bratovich, a corte te oferece uma Cirurgia igual gratuitamente, devido à corrupção de sua anterior.
— Eu aceito… mas por favor, façam com que eu nunca tenha conhecido este homem, — ela disse.
Os guardas nos carregaram por caminhos separados. Eu olhei por cima do ombro para ver se Mila estava bem, e pude vê-la olhando triste para mim.
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— Bem-vindo de volta, — disse a nova cirurgiã para mim — desta vez vamos ter certeza que você terá um passado novo imaculado.
Ela sorriu e acariciou meu cabelo. Eu estava preso à cadeira operatória e não podia me mexer, mas eu não queria sequer tentar. Eu só queria começar de novo, para ser perdoado ou esquecido novamente, algo que não senti desde aquele dia fadado anos atrás. Como fui horrível. Como ela lutou e pediu por misericórdia. A cirurgiã ligou a máquina e, por apenas um segundo, eu pude sentir e lembrar de todas as coisas que fiz a Mila, em todas as minhas vidas.
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Estava sentado na mesa do bar, bebendo um chope horrível sozinho. Era uma noite quente e sombria de Verão, mas dentro do bar tinha ar-condicionado então eu me sentia confortável. Olhei ao redor do bar já que estava bebendo sozinho e acabei olhando para uma garota curiosa que estava sentada no lado oposto do bar. Ela tinha um lindo cabelo preto que parecia púrpura quando a luz brilhava sobre ele. Seu olhos eram bonitos, e ela estava lendo uma revista sem se preocupar com seus arredores. Ela notou que eu a estava encarando e sorriu para mim, e eu me senti envergonhado. Tomando uma decisão, eu rapidamente terminei meu chope e pedi outro. Precisaria de muita coragem para falar com aquela linda mulher. Me levantei da mesa e andei em passos desajeitados até ela e sorri conforme ela lentamente levantou o olhar de sua revista para mim.
— Olá, — eu disse numa voz esperançosa.
— Olá, — ela disse com um sorriso.