Neblina.
Era tão reconfortante ver a cidade sendo desenhada lentamente no véu branco, do alto de sua janela, no décimo andar. Tomava sempre uma xícara de café, sem leite e amargo, achava que combinava com aquele momento, e bebia em goles lentos o amanhecer. Preferia esses trinta minutos de silêncio sobrenatural a todas as horas e ocorrências de seu dia.
Quando estava claro o suficiente, andava pela casa mexendo em pequenos objetos, reorganizando-os, só para que pudesse ter o prazer de modificar o ambiente. Mudaria os quartzos de posição, colocaria o retrato em um novo ângulo e giraria seu cacto com delicadeza maternal.
Que filme viu ontem? O que comeu ontem?
Que dia foi ontem?
Ontem parecia anos atrás.
O apartamento de Rosa era um mundo separado, paralelo a toda realidade que deixa as pessoas loucas lá fora. Um delicioso templo, compacto e aconchegante. Pé ante pé, e ela tocava o cabelo preso no alto como uma pequena coroa que ostentava majestosamente para si mesma.
Que dia foi ontem?
Falou com alguém ontem? Leu algo ontem?
Ontem parecia não ter existido.
Nasceu naquela manhã e se encantou pelo seu rosto, que vê diariamente, como quem olha pra uma sereia muda.
Que dia é hoje?
“21/10”
Fazia Home Office, então passava a maior parte do tempo conectada, mas naquela manhã sua internet não colaborou com a conexão. Estaria sua caixa de entrada abarrotada de serviço acumulado? Procurou não se importar muito. Na verdade, nem conseguia. Imaginava os rostos borrados de seus colegas de trabalho e nada mais além de sons e movimentos lentos que nem a deixavam preocupada.
Hoje é 21/10, quarta-feira, e está de folga por força maior.
Riu para si mesma ao sentar no sofá e abraçar os joelhos. Lembrou de algum amigo que sempre usava essa expressão para se referir a algum imprevisto que o impediu de cumprir alguma obrigação.
“Caso fortuito e força maior”. Isso era a falta da internet, e pouco ligava.
Recostou-se e seu braço tocou em um livro do qual nem lembrava se ela comprou e deixou ali, ou se ela ganhou e deixaram ali. Quando foi a última vez que recebeu uma visita mesmo?
Abriu a primeira página, passou os dedos de cima a baixo e começou a ler. Nem viu as horas serem consumidas. Não sentiu fome, nem sede, nem vontade de ir ao banheiro. Estava tão absorta que o mundo todo cabia nas suas mãos e era feito de páginas.
Entre um virar e outro de folha, sentiu um ar um pouco mais pesado. Como que alguém chegando. Olhou ao redor apenas para confirmar que estava sozinha. Morava sozinha havia anos. Olhou pela janela. A neblina ainda estava forte. Caminhou até lá. Num segundo, notou o silêncio da rua lá embaixo, noutro segundo, virou-se e deu de cara com um espectro de mulher, olhos assustados, boca trêmula e postura tensa.
Gritou.
Correu.
Fechou-se no quarto.
Pegou o celular para ligar para pedir ajuda. Uma invasora, que provavelmente não sabia que ela estava em casa, deparou-se com o inesperado. Discou, procurou na agenda números de conhecidos, nada. Internet ainda fora do ar. A maçaneta girou e a porta não abriu.
Espremeu-se no canto. Encolheu-se. Esperava o pior. Ouviu um baque na porta, e baixou a cabeça. Ouviu a porta se abrir. Escondeu todos os seus sentidos no escuro entre seus joelhos e cotovelos. Vestiu-se de medo, como uma criança debaixo de um lençol pro fantasma ir embora.
Silêncio. E o escuro se estendeu para todo o quarto.
Noite?
O que aconteceu?
Desmaiara ali mesmo e recobrou os sentidos horas depois?
Tentou ligar a luz do quarto, mas não conseguiu. Com cuidado, andou pelo corredor até chegar à sala. O pequeno interruptor ao lado da televisão funcionou. Um clarão tomou conta do recinto, e constatou que estava só.
O que aquela ladra levou?
Contou seus cristais, viu seus objetos variados e não deu por falta de nada. Analisando a estante, viu o livro que lia mais cedo lá. A mulher pegou e guardou? Na certa não, deve ter sido ela mesma, antes de ser surpreendida por aquela visão de que até duvidava.
Desligou a luz e foi pro quarto. Tentou novamente acionar o interruptor, mas não teve sucesso. Lâmpada queimada, mas a luz da rua era suficiente para ela. No dia seguinte daria um jeito.
Sonhou com cenas aleatórias sem sentido e foi arremessada de seu sonho quando viu vividamente os olhos arregalados daquela mulher. Com um salto, despertou.
A porta estava aberta ontem? Como que ela entrou?
Tomou banho se acostumando à lembrança do dia anterior, fez seu café e relaxou com a visão da neblina escorrendo pelas ruas vazias e vultos de transeuntes que passavam. Carros? Alguns sons de buzinas e rodas, nada chamativo.
Tentou mexer no computador, mas a rede ainda estava fora do ar. Andou pelo corredor, mexeu nas suas coisinhas como se elas estivessem fora do lugar. Ela arrumava de volta ou mudava a posição? Não saberia. Parou quando, por cima da borda da xícara que estava na boca, viu um papel dobrado na mesinha onde achara o livro.
Olhou para ele por alguns minutos. Estava dobrado cuidadosamente bem no meio e, apenas por precaução olhou ao redor, olhou para a porta do apartamento trancada, retornou o peso da curiosidade para o papel e pegou.
Pelo formato, era uma carta. Apenas rabiscos em seu interior, mas tinha o risco de um formato peculiar de carta. Somente uma palavra legível: Rosa. Seu nome era a única coisa que conseguia entender. Era para ela porque o nome estava no início; era sobre ela porque seu nome se repetia algumas vezes no corpo do texto. Impossível saber o remetente.
De repente, lembrou-se do espectro de mulher. Era uma pessoa de verdade ou um susto em figura de gente? O livro que lia? Era sobre o quê? Convenceu-se de que era uma ilusão e uma calma inominável tomou conta de si. Sentia seu coração batendo normalmente.
Olhou pela janela, a neblina ainda estava forte. Um sol tímido brechava o mundo e as pessoas pareciam estar mil andares lá embaixo. Ela era uma princesa no alto de sua torre e não queria ser salva.
Andou pela casa, mexeu nas suas coisinhas, que mania de girar e mudar de posição ela tinha. Dava prazer se sentir dona de seu espaço. Arrumar os detalhes era como maquiar a casa e ela se sentia tão bem fazendo aquilo que faria de novo e de novo.
Ligou a luz da sala, certificou-se de que funciona normalmente. Deixou ligada e foi até o quarto, onde tentou ligar a luz e não conseguiu. Voltou para a sala e a luz estava desligada. Ligou de novo, alguns minutos acesa e ela se apagou como que por mágica.
“Droga de fiação!”.
Saiu do apartamento, com seu roupão e sua coroa de cabelo, e foi andando pelo corredor. Ouviu por trás das portas as vozes de seus vizinhos, mas não queria perturbar ninguém. Foi até o apartamento da síndica. Bateu à porta. Sem resposta. Tinha gente lá dentro, mas ela foi simplesmente ignorada. Depois de umas três tentativas, voltou irritada para casa. Escreveria uma mensagem bem aborrecida, não encontrou suas canetas na gaveta de sempre e bateu na mesa com força.
O som de seu esmurro ecoou pela casa como se a casa fosse uma enorme caverna e ela afinou seu ouvido. Vozes?
Uma voz apreensiva. Uma voz apertada. Uma voz engasgada.
“Rosa”
Era seu nome. A única coisa que entendia. Como na carta, só conseguia entender o seu próprio nome e ela se arrepiou toda. Havia emergência em cada poro de sua pele. Havia um espírito na casa?
Fazia tempo que não conversava com ninguém, que não recebia seus amigos. Agora sem a rede, estava mais isolada ainda e, por mais que aquilo não a afetasse tanto, sentiu uma súbita falta de navegar aleatoriamente entre sites diversos.
Reuniu todas as lembranças de filmes de terror e livros, caso fosse uma alma vagante ela poderia aplicar alguma lição que aprendeu neles. Incenso! Incenso pode ajudar.
Correu para o quarto e acendeu um incenso de rosas que guardava para suas meditações.
“Rosa, você está aí?”
Ouvir algumas palavras a mais lhe causavam um misto de medo e ansiedade. A voz sem boca e sem rosto sabia seu nome e lhe procurava. Cada palavra vinha de uma direção diferente e Rosa girou sobre si mesma procurando uma orientação.
A mulher aparecera na sala. Rosa iria para a sala. No caminho, esbarrou na mesinha e derrubou seus quartzos no chão. Aquelas pedras ela comprou há muito tempo e eram alguns dos objetos preferidos de sua residência. O gnomo despedaçado que enfeitava a miniatura de floresta lhe encarava com um meio sorriso descontruído.
Um sussurro não reconhecível ecoou após a queda do objeto. De susto. De medo. Um som universal que prescinde de qualquer vocabulário. Quem quer que fosse, foi alcançado pela queda dos quartzos.
“Rosa, por favor, acenda a luz”
Era uma voz calma. Talvez até segura. “Espíritos não conseguem alcançar a matéria”, pensou, “preciso ligar a luz eu mesma”. E acendeu.
Sentou-se no meio da sala. Equilibrou o incenso em um suporte e fechou os olhos.
“Rosa, querida”
Que voz era aquela? Um tom familiar. Não era medo, era acolhimento. Sentiu sono. Muito sono.
Sentiu como se uma mão a segurasse, e depois várias mãos. E depois fios fortes engancharam em seu corpo. O que estava acontecendo?
A coragem forçou-a a abrir os olhos. A luz da janela à sua frente estava mais forte e seus sentidos mais fracos. Era como estar bêbada. A neblina tomou forma de gente, as nuvens formavam cabelos curtos até os ombros e um rosto quase gentil, não fosse a incapacidade de se mostrar todo.
Uma mulher saída de uma foto antiga borrada pairava à sua frente. Sorria, olhava curiosamente, parecia uma tela de televisão com mau sinal. Que agonia ver aquela forma de gente se transformando pouco a pouco, como um feto se faz pessoa na gestação.
Rosa estava tonta. O cheiro forte de incenso? Aquela figura sinistra e amigável? Toda aquela situação estranha? Rosa queria vomitar. Rosa não tinha forças nas pernas para se levantar e correr. A boca da mulher se mexia, mas não saia nenhum som que pudesse entender. Via a forma de seu nome nos lábios delas, e só. Que zumbido estranho é esse?
Foi então que Rosa notou outras pessoas na sala. Mãos estendidas como se quisessem pegar nela. Queria gritar, tinha medo, mas não conseguia. Ouviu um barulho fortíssimo. Vidros se quebrando e metal retorcido. Tinha mais gente na casa e estavam quebrando todas as suas coisas. Um soco no rosto, outro no braço, um chute na costa. Rosa estava sendo espancada e sentia dor. O grito estrangulado se libertou e tomou conta do universo, e quando Rosa abriu os olhos…
Levantou-se da cama. Havia tido um pesadelo que ficara largado há anos no passado. Nenhum peso, malmente lembranças de alguma cena aterrorizante do cinema. Tomou seu banho com um sabonete novinho. A água estava esplendorosamente gostosa. Colocou seu roupão preferido, fez seu café e foi namorar o amanhecer.
Andou pelo corredor, arrumou suas coisinhas de novo e de novo. Mandou um beijo pro seu cacto e segurou seus quartzos ainda inteiros. Que lindos e brilhantes eram. Jurou também que seu cacto lhe lançava um sorriso invisível.
Abriu a porta, desceu as escadas, foi para a rua, sem pressa, com sua coroa de cabelo, passos confiantes e um jardim dentro do peito.
Sobre a cidade, o sol subia reinante, sem neblina, um tráfego sufocante, um formigueiro de pessoas e compromissos, sonhos, pressa, metas, rotinas, desejos, mentiras e preocupações… e em algum lugar, Rosa sem destino, onde os tempos verbais não importam mais.
(Continua - ?????)
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