🤔 Para Refletir :
"Mais vale um jogo completo na mão do que dois projetos voando."
- FL

Segredos Mortais (16 +) - Capítulo 3

NolanHawk Masculino

Cidadão
Membro
Membro
Juntou-se
06 de Dezembro de 2018
Postagens
92
Bravecoins
346
Capítulo 3
O relato da senhora Núbia​

O cheiro de sangue vindo dos corpos mortos presentes no chão do ônibus ficava cada vez mais forte com o passar do tempo, deixando aquela situação cada vez mais desconfortável, se é que isso era realmente possível. As três garotas ricas já haviam ficado mais calmas e uma delas tinha levantado para acalmar os dois garotos que agora choramingavam baixinho enquanto a senhora que cuidava deles caminhava lentamente para o que podia ser sua morte caso não tivesse a coragem que o pedido da Morte demandava. A cada passo dado, ela se apoiava nos encostos de cabeça das poltronas até ficar posicionada ao lado da segunda fileira mais próxima da catraca do ônibus. A senhora, olhando fixamente para a morte, pergunta-lhe suas preferências acerca do lugar onde ela poderia ficar para começar o relato:

— Posso sentar ou preciso fazer a confissão em pé mesmo? Antes que pense em me deixar em pé, pense em minha idade, do jeito que esse ônibus balança você acabará tendo que me levar sem nem mesmo eu tentar lhe contar o que escondo no fundo de minha alma. — A Morte dava de ombros, para ela não importava onde ou como a senhora contaria, mas sim contar seu segredo sem mentir ou omitir nada. Para decidir a questão de uma vez, ela apontava para uma cadeira qualquer das fileiras próximas a catraca e esperava pacientemente a senhora chegar ao seu lugar. Um pigarro era ouvido por todos, sinal que a velha começaria a falar:

— Um segredo tão obscuro que ao contar para todos garanta a minha vida? Eu sei o que você quer. Pode não parecer pela minha falta de sotaque, mas eu não nasci nessas terras. Meu país de origem é extremamente pobre, tanto que me sinto uma vencedora na vida por trabalhar como empregada e babá para uma família rica. Meu país de origem é extremamente pobre e está em uma guerra civil que começou antes mesmo de meu nascimento e perdura até os dias de hoje. Se acham que sabem o que é pobreza, há, vocês estão completamente enganados. Eu vivia em uma pequena vila onde a maior parte da população era composta por mulheres e crianças, já que todos os homens que conseguiam segurar um rifle se tornavam a lenha que alimenta, até hoje, a fornalha da guerra. A maior parte dos alimentos que produzíamos também era destinada à guerra, se tornava o alimento dos soldados, deixando a nós, os que não podiam lutar, com um pouco mais de uma refeição média por dia. Acabávamos tendo que escolher se passávamos fome no almoço ou no jantar, acredite, essa escolha é horrível. — Ela tirava uma garrafa d'água de dentro da bolsa que carregava e depois de tomar um longo e profundo gole, voltava a falar:

— Para a má sorte de minha família, meu pai foi um dos homens chamados para a guerra e nunca mais voltou. Ele não foi o primeiro e nem o último a morrer , mas não quer dizer que a notícia de sua baixa não nos entristeceu. A minha mãe, que ainda tinha esperanças de tê-lo de volta, caiu no que fui entender apenas muitos anos depois, numa depressão extrema que a fez definhar quase que literalmente até morrer cerca de um ano depois do nosso pai. Então desde muito cedo eu e minha irmã aprendemos a ser forte, nós roubávamos quando estávamos com fome e cuidávamos uma da outra. A vida com certeza era difícil, mas ao menos pensávamos que não podia ser pior do que aquilo. Eu não podia estar mais errada. — Mais um gole na garrafa e depois ela retomava seu relato:

— Num dia de verão, quando o sol estava tão forte que era quase impossível andar na rua sem sandálias, eles apareceram. Um grupo de soldados encapuzados que serviam ao lado contrário do nosso da guerra civil achou nossa vila e logo descobriram que o lugar, embora sendo bem pequeno, ajudava e muito na alimentação do exército, sendo um dos únicos pontos seguros que os Txerah, nome dado aos que defendiam a bandeira inimiga, não conhecia. Bem... Até aquele momento. Mas eles não atacaram naquele momento, nãããão, esperaram todos estarem dormindo para terem certeza que o plano daria certo. E deu certo. Minha irmã e eu costumávamos ficar acordadas até tarde em cima dos telhados, pensando em nossa vida e em quanto ela havia mudado em tão pouco tempo. Sempre fazíamos questão de relembrar os momentos que passávamos juntos dos nossos pais antes de perdermos tudo. O dia do ataque não foi diferente e o fato de estarmos lá em cima salvou nossas vidas, se bem que pelo que tive que fazer depois, eu preferia ter perdido a vida naquele dia como todos os outros da vila. — Ela pigarreou mais uma vez para limpar a garganta, não parecia tão acostumada a contar histórias daquela forma, muito menos aquela que a Morte queria ouvir.

— Quando eles acabaram, a nossa vida havia acabado junto com a nossa vila. Todas as pessoas que conhecemos estavam mortas e a vila completamente devastada. Ainda ouço até hoje os gritos de terror e agonia enquanto todos morriam, eles vivem em meus pensamentos diários, em momentos de descanso e em meus sonhos. Quando a poeira assentou, só restavam eu, minha irmã e os escombros do que um dia foi um ótimo vilarejo, antes da guerra nos atingir, claro. A partir daí, decidimos continuar a viver como únicas moradoras da vila, tínhamos ouvido notícias de que estrangeiros estavam interferindo para acabar com a guerra e resgatando sobreviventes. Agarradas nessa esperança, decidimos esperar pelo socorro enquanto vivíamos do que achávamos nos escombros ou nos arredores da vila, mas para a nossa má sorte, a ajuda demorou tempo demais. — Sinceramente, eu realmente não queria atrapalhar o relato dela, mas algo tinha chamado minha atenção, mas admito, foi um belo de um erro que eu cometi:

— Desculpe, vou te chamar de senhora por não saber seu nome, mas senhora, por qu... — Antes que eu terminasse a pergunta, um calafrio percorreu minha espinha, o que me forçou a olhar para a única coisa que eu realmente tinha medo na vida, a Morte.

— Seu nome é Núbia. — Ele respondia, seu olhar impassível. Mas eu havia chegado até ali, qual seria o problema de continuar a pergunta?

— Bem... Então Núbia, porque vocês não tentaram ir para outro vilarejo? Me desculpa se te atrapalhei, mas eu adoraria terminar o dia sem ver mais um corpo morto estirado no chão. Acredito que aquelas crianças também não querem vê-la nesse estado. — Todos prestavam atenção em mim e salvo o barulho do motor do ônibus, dava apenas para ouvir um fúnebre silêncio vindo de todos. Até que palmas acordaram a todos do transe em que havíamos mergulhado e viramos para ver de onde o som estava vindo. Todos perceberam ao mesmo tempo que a Morte havia pulado para a parte em que nós estávamos agrupados com uma enorme foice em mãos e longas asas negras que saiam de suas costas. Ele vinha em minha direção. Era certo, eu estava morto. O meu olhar se encontrou com o dele e a única coisa que pensei foi: "acabou, não vou poder reencontrar Karla. Porque as coisas tinham que ser assim?!". A partir daí, tudo aconteceu rápido demais para qualquer um pensar em reagir. A morte facilmente venceu a distância que nos separava e com um golpe certeiro de sua aterradora foice, decepou por completo a minha orelha esquerda que batia no meu ombro antes de cair no meu colo. O corte foi feito numa velocidade tão alta que demorou alguns segundos para a dor se apossar do meu corpo. Eu gritava em agonia enquanto me debatia em meu acento, as mãos segurando o buraco ensanguentado que antes era minha orelha.

Todos se afastaram de nós, completamente amedrontados e eu nem precisava ver as expressões em seus rostos para saber o terror que sentiam. Aquele ser de tremendo poder e importância estava sendo complacente conosco, mas era melhor não o irritarmos ou o nosso destino poderia ser talvez pior do que a própria morte. Ele se aproximou de minha orelha intacta para que apenas eu o ouvisse, então falou em tom de sussurro:

— Na próxima vez que você interromper a história de alguém, independente do motivo, será a sua cabeça que rolará. — E então aumentava a voz para que todos o ouvissem:

— O próximo que interromper uma história terá um dos seus membros arrancados, e tenho dito. — Depois mudou mais uma vez para um tom mais cordial. — Por favor, continue sua história Núbia. — Demorou um certo tempo para os ânimos se acalmarem mais uma vez, o que era perfeitamente compreensível. Um pano havia sido me dado pelo cara todo tatuado. Ele vinha até mim e falava baixo no meu ouvido:

— Pressione na ferida sem parar, o sangramento será estancado logo logo. — Eu aceitava feliz a dica e o pano e faria o que ele mandou. Apesar de que a primeira vista, por si só ele não seria a primeira pessoa que eu pensaria que me ajudaria. Se eu o visse na rua e estivesse de noite, tenho quase certeza que atravessaria a rua. Porém, ele estava bem ali, sendo solícito no lugar onde eu menos esperaria uma atitude de qualquer pessoa, muito menos de alguém desconhecido, mesmo eu tendo perdido a orelha por justamente tentar ajudar. Quando a senhora Núbia voltou a falar, decidiu, com louvável sabedoria, ignorar a pergunta que eu tinha feito. O mais incrível é que o que ela contou foi com certeza a coisa mais chocante que alguém presente naquele ônibus fez.​
 
Voltar
Topo Inferior