- Tocuslav era o nome da minha avó - uma risada graciosa pontuava o final da frase. Aileen rolava no chão e jogava os calcanhares pra cima em claro sinal de alegria. Ao seu redor, um lagartinho do tamanho de um filhote de cachorro com as patinhas tão curtas que mal conseguia dobrá-las para caminhar, saltitava agitadamente.
- Mentira - mais gargalhadas - o nome dela era Rayssastoyavisc. Eu inventei Tocuslav porque parecia as batidas do meu coração quando encontrei você.
Aileen carregou seu bichinho acima da cabeça e o encarou.
- Eu daria a minha vida para proteger você! Um dia me leve para voar sobre as nuvens, quando você já tiver asas, é claro!
Lembranças de um tempo esquecido povoavam os sonhos da princesa adormecida, misturando momentos felizes que Aileen e o dragãozinho viveram juntos, com os momentos finais de perseguição, dor e sacrifício. Um redemoinho de relances que vinham de outra vida.
- Faz horas que eles partiram - sussurrou a rainha observando o céu pela janela.
Ela se referia à encantadora trupe de viajantes que por algum motivo saberiam o que fazer nessa missão. Não tinha ideia do que despertaria sua filha desse sono, nem de como reagir frente à ameaça iminente.
Ao contemplar o chão, notou que algumas estruturas estranhas estavam posicionadas, como colheres invertidas, eram muitas e o som das que estavam sendo arrastadas pareciam rugidos menores.
Já dentro das rotas arborizadas e esbranquiçadas, por onde raios de sol transbordantes atingiam delicadamente o solo, o grupo caminhava seguindo a liderança de César. O objetivo era seguir pela montanha ao leste, de onde os rugidos pareciam vir. O astrólogo ladeava Philipe, com quem conversava despretensiosamente sobre qualquer coisa. Stuchi vinha ao fundo conversando com um séquito militar que os acompanhavam para caso ladrões ou outros perigos surgissem. No meio, Richardison levava Wilkson no pescoço como se fosse uma criança, enquanto Jhon, a criança de verdade, vinha a pé carregando umas bolsas.
De vez em quando, Wilkson segurava os cabelos do bardo como se fossem rédeas pela mera diversão de encher o saco e inflava na sua montaria humana a vontade de jogar o boneco em um penhasco qualquer. Risinhos assombrosos vinham do fantoche.
- Quero pizza!
- Você é um boneco, não come, não sente sabor.
- Como você sabe?
- Eu imagino que seja assim. Na verdade, não imagino mais nada. Quando menos esperei, meu fantoche ganha vida e me usa de cavalo.
- Não temos cavalos, todos se recusaram a subir os montes por medo dos rugidos. Então, tive que improvisar.
O bardo arfou em grande irritação. Buscava em sua mente possibilidades para estar passando por aquilo, explicações sobre como seu boneco ganhou vida.
- Uma reclamação que tenho a fazer é sobre como você come pães melequentos de azeite fazendo a apresentação sem lavar as mãos.
- Ué, por quê?
- Ora! Azeite e sal ardem!
Esbugalhando os olhos e fitando a estrada com cara de pacote de feno, Richardison preferiu terminar a conversa ali. E eu também! Vamos para outro grupo.
- Professor, quanto tempo o senhor acha que levaremos?
- Cruzaremos o topo da montanha e tentaremos entender a direção dos sons. Os rugidos ficam cada vez mais frequentes e fortes. Significa aproximação, não?
- Talvez! Se considerarmos elementos como o vento e altitude.
- O topo da montanha é o ambiente ideal para um pouso, essa criatura deve estar rodeando o pico.
- E nos observando.
Stuchi argumentava com o capitão da guarda, que se preocupava não só com a segurança de seus homens, que eram em torno de 40, mas também do grupo que aparentemente de sobrevivência nada entendia.
Um rugido os fez parar e abrir os olhos em alerta. Parecia cercá-los, parecia circular o grupo e vir de todas as direções. Um tronco veio rolando e derrubou alguns dos soldados. Em seguida, uma árvore caiu e quase acertou César e Philipe.
Sim, cercados, e por mais de uma criatura.
Enquanto todos encaravam a árvore caída, o rugido onipresente e múltiplo tomou a forma de uma sombra que fez com que cada um deles, inclusive Wilkson, virasse a cabeça suspirando de medo. Um giga-urso tapava o sol e rasgava a boca em dentes afiadíssimos, enquanto outros três ursos menores, mas igualmente ameaçadores, apareciam nas laterais.
Uma parte do grupo armou-se, outra parte correu.
Em um abraço, o giga-urso dilacerou vários dos soldados, que nem tiveram chance de se defender. Sua força de aparato de guerra os lançava feito tiras de papel amassadas na direção das árvores, onde eram empalados em galho ou, com sorte, quebravam alguns ossos.
- Que velozes eles são! - Philipe falava com dificuldade tentando colocar um pé na frente do outro o mais rápido possível.
Parecia que mais ursos se juntavam à caçada de humanos (e boneco) e logo construíram um círculo ao redor das presas que ainda resistiam.
O bardo, Stuchi, Philipe e César, juntamente com alguns soldados, estavam cercados. Jhonatan e Wilkson tinham paradeiro desconhecido, nem sinal do capitão e dos demais.
Eram oito ursos e os tremores no chão indicavam a aproximação do giga-urso.
- Um giga-urso é o líder de um bando. Misticamente, seu tamanho resulta de uma finalização fatal que os candidatos à liderança dão após combate no perdedor. Devoram uns aos outros em sinal de vitória e seu tamanho dobra quando só sobram os ossos do derrotado.
- Nossa, César, que balela é essa? - protestava Philipe.
- Conversas de bar, caçadores que têm história pra contar.
Um uivo estridente ecoou por entre as árvores deixando os ursos agoniados. O líder encarava o ambiente com rigidez e virou-se após ouvir passos ágeis e firmes.
Um lobo!
- Nossa! O que vem depois? - um dos soldados duvidava do deboche do destino em reunir diversos predadores para destroçá-los.
O lobo grunhiu na direção do grande urso, que respondeu com um som abafado. Aquele, então, saltou na direção deste e desferiu inúmeras dentadas que mancharam sua branca pelugem de vermelho.
Entre mordidas e patadas, o urso apanhava sem conseguir desferir um golpe certeiro no lobo, extremamente rápido. A grande besta rajada de rubro, então, olhou com ira para o seu oponente e correu, seguido pelo seu bando envergonhado.
Atrás do lobo, a sombra de um menino carregando um boneco surgiu, juntamente pelo capitão e os soldados sobreviventes. De 40, o séquito bélico de confiança do rei se reduziu à metade.
O lobo deu uma volta e encarou o grupo de Richardison soltando um uivo e dando passos tímidos. O bardo, tomando coragem, aproximou-se e passou a mão pela cabeça do animal, agradecendo de forma balbuciante.
Surpreendentemente, o lobo esticou-se nas patas traseiras até alcançar a altura de um homem. A tensão foi quebrada pelo grito espalhafatoso de Stuchi.
- O Grande Alkemarra!
O que foi respondido por uma voz tão sensual e grave que calaria uma floresta inteira.
- A seu dispor.
Um boneco falante, ursos canibais e agora um lobo humanoide com músculos tão sobressalentes que deixavam qualquer ser humano boquiaberto. Hercúlea era sua presença.
Alkemarra era um protetor das florestas. Uma lenda tão forte na cultura da região quanto Tocuslav. Se uma era verdade, a pior poderia ser também.
A noite caiu, fogueiras foram acesas. Barracas armadas. Troncos arrastados para sentarem-se ao redor do fogo.
Depois de umas horas, quando grande parte do pessoal já dormia. Richardison contemplava a lua e o lobo acomodou-se ao seu lado.
- Eu vi a lua subir aos céus, sabia?
- Sério?
- Sim, o mundo já teve outras luas. Elas se desfazem e os corpos celestes ganham outros formatos. Mas de tempos em tempos os céus apresentam uma figura repetida.
- O astrólogo me falou disso.
- Isso permite que os andarilhos estelares cumpram seus destinos.
Os andarilhos são outra lenda que atravessa as gerações feito uma lança e tatua no coração coletivo do povo a verdade da poesia do Universo.
- César me disse que as almas costumam voltar.
- Mais do que isso, às vezes, quando impedidas de se mover, elas se despedaçam e vivem outras vidas para se encontrarem novamente um dia.
O lobo olhou nos olhos do bardo. O lobo tinha uma aura neon emprestada pelo brilho do céu. O lobo tinha milhares de anos.
- Mas não no mesmo corpo - captou os pensamentos do homem e se adiantou.
- Eu renasço quando o corpo cansa e sempre me lembro da vida anterior. Como sou designado pelos deuses para cuidar da floresta e da natureza, meu status de protetor me permite a renovação e a memória intervidas.
Barulhos vindos pela esquerda.
Parecem rastejar.
O bardo se arrepia, pois pode ser uma cobra, e ele tem trauma de cobra. O lobo mantém a postura altiva.
Algo como uma fila se arrastava e, na penumbra, não deixava dúvidas: era uma cobra. O bardo se preparou para atacar, mas o lobo colocou a pata sobre a mão armada e torceu o focinho.
A fila se desfez em quatro pequenas individualidades. Eram coisas cobertas por folhas que se posicionaram na frente do bardo em meia-lua. De repente, o que estava ali saltou sobre ele.
Richardison caiu de costas e viu figurinhas de pessoas segurando sua camisa na tentativa de ameaçar.
- ONDE ESTÁ?
- O quê?
- ON-DE-ESTÁÁÁÁÁ?
Um deles apalpou o bolso da camisa e retirou uma pedra esculpida que o bardo achou mais cedo na trilha e considerou bonita o suficiente para uma lembrança.
- Acheeeeeei! - disse a figurinha apalpadora.
Levantou-se e fez com que eles deslizassem no chão caindo em pé.
- Mas o que significa isso? - bradou Richardison.
Uma das figuras, a mais agitada de todas, começou a esbravejar:
- Isso! - apontou para a pedra que era metade de seu tamanho - É o nosso trabalho da escola!
- Como ousa roubar nosso trabalho?
- Não sabe que é feio?
De súbito, suspenderam as acusações. Notaram o lobo deitado no chão com a cabeça sobre as patas cruzadas.
- Alkemarra! - gritaram em uníssono.
- Crianças, onde está a educação?
- Caiu junto do galope.
Risadinhas agudas enchiam o ar.
O lobo conhecia aqueles seres e o bardo estava ansioso por apresentações.
- Eu sou Luís.
- Eu sou Rafael.
- Eu sou Caico.
- Eu sou Héric.
- E nós somos os Super-Fundamentais! - bradam em uma voz só como se fosse uma trupe de comédia itinerante, com direito a gestos personalizados ao final da frase e pose.
Alkemarra se aproximou do bardo e disse:
- Eu levo e trago de passeios florestais. Hoje estávamos fazendo esse trabalho de campo quando os ursos apareceram e...bem, foi aquele corre. Eu sabia que me achariam.
- O que são eles?
- Gnões.
Richardison franziu a testa sem entender o que queria dizer.
- Nem tão pequenos para gnomos, nem tão grandes para anões. São meio-termo e sua espécie não tem nomenclatura certa. Poucos seres humanos puderam vê-los e os homens só nomeiam o que percebem ou acham que percebem.
- Entendi.
No pequeno grupinhozinho do quartetinho, Héric se abaixa para pegar uma flor.
- Belinha vai amar esse presente.
Os demais soltaram sons aleatórios e pequenas vaias para depois cantar:
- Tá-na-mo-ran-do! Tá-na-mo-ran-do!
Ao longe, os dois observavam:
- São crianças, não são?
- Sim, estão na quinta série.
- Apesar de crianças, têm cara de 35 anos.
- Coisas da espécie. Eles nascem com barba e traços maduros, alguns possuem traços caricaturados de seres humanos, com olhos e cílios grandes e brilhantes.
A manhã dissolveu a noite suavemente e despertou todos.
Postos novamente na trilha, Wilkson ia no colo de Jhon, Richardison ao lado de Alkemarra, as quatro figuras surpreendentes da noite anterior no seu lombo como se fossem cavaleiros (e o lobo gentilmente os carregava), os demais seguiam alguns metros atrás curiosos pelo que viam, aceitando a promessa de que em outro momento tudo seria explicado.
- Upa, Upa, seu Lobinho!
Quanta paciência o Protetor tinha…
O ar foi dominado por uma potente onda sonora que fez todos se abaixarem como se uma tampa caísse sobre eles. O som percorreu toda a extensão da montanha e alcançou o castelo, retirando a rainha de suas preces e levando o rei até a murada externa.
Momentos depois, um tremor chacoalhou quilômetros de terra e fez com que as pessoas na cidade se protegessem de estantes e objetos caindo, assim como obrigou os aventureiros nas montanhas desviarem de troncos, pedras, árvores e animais desesperados que, em vão, procuravam estabilidade e proteção.
- Vamos correr, estamos perto do topo. O dragão deve estar lá.
- Exato! Tudo isso deve ser sua presença.
Vozes aleatórias e palavras sem fonte segura. Apenas gritos de incentivo a continuar fazia-os seguir e se entender.
Richardison colocou Jhon no colo e este se abraçava a Wilkson com toda força que podia. Philipe segurava a mão de Stuchi e César fazendo uma corrente e forçando os passos atrás do bardo. O capitão e os soldados seguravam-se uns nos outros e os gnões agarravam-se aos pêlos de Alkemarra abraçando-se na tentativa de não cair.
Rajadas de vento tão fortes surgiam sem avisar e a neve se esfarelava no ar. Os tremores ficando cada vez mais fortes.
Isso se seguiu pelos próximos 30 minutos, quando os bravos heróis chegaram ao topo para testemunhar a chegada de Tocuslav.
Levantavam a cabeça tentando enxergar naquele, agora, enevoado cenário, e nem havia sombra de sua presença. Mas sabiam que ele estava por perto, pois a terra parecia se partir mais e mais, e o céu monstruosamente rugia por todos os lados.
Distante dali, as pessoas se levantavam incrédulas. O rei e a rainha de olhos arregalados observavam a montanha, a névoa, a devastação. A poeira e os destroços jorrando-se para cima e alcançando o céu. Estavam errados sobre Tocuslav. Ele não chegaria pelo ar pousando dramaticamente no solo como um infernal ser alado.
Tocuslav sempre estivera ali. O dragão não estava distante, O dragão não morava na montanha. O dragão não se escondia, nem pousaria na montanha.
O dragão era a montanha!