Apenas um texto de alguns minutos. Um conto bem simples e velho de uma mulher e seu mordomo. Vou alterar algumas coisas. Tá melodrama demais.
Ela era como o sol. Quente demais para ser observada de perto, não se olhava diretamente, era apreciada de longe, mas todos tinham medo de chegar perto. Era a luz que guiava-os pela escuridão, mas todos sabiam que um dia ela explodiria, eliminando todos sobre seu cuidado, e os deixariam nas sombras. Eles juraram lealdade, mas a temiam. Eles a cumprimentavam, mas não a olhavam nos olhos e fugiam do sol. Muitos a odiavam, sem perceber que estariam perdidos sem ela.
Eu, no caso, não era nada disso. Eu sou apenas um velho, alguém que teve a sorte de estar no lugar certo, na hora certa, e que deve sua vida a uma pessoa que conheceu por acidente, em um momento ruim. Ela nunca me pediu nada, mas eu não era desses que recebia dinheiro e corria para as montanhas ou gastava tudo com remédios e bebida. Não gostava de dever as pessoas, nem aos meus pais devia um centavo, muito menos a uma mulher do calibre dela. Eu figuei, onde ninguém mais queria ficar. Quem sabe foi por alguma razão oculta, um desejo juvenil que desapareceu cedo demais para afetar nossa relação. Relação essa que nunca existiu, devo dizer, não por falta de tolas tentativas minhas.
Algo que você aprende rápido vivendo com um membro de gangue, principalmente alguém como ela, é que as imagens que temos de James Bond e filmes de rua são muito diferentes do que acontece de verdade. Isso pode parecer obvio, mas não é, ou não era para mim. Eu estava preparado para pegar uma arma se ela pedisse, estava preparado para enterrar corpos ou invadir casas. Mas isso nunca aconteceu. Ela nunca me pediu nada além de chá. Sem muito o que fazer, eu virei um ajudante doméstico. Ridículo, eu sei, mas é mais divertido do que parece, você pode aprender muita coisa varrendo tapetes de cem anos, ou limpando quartos cujos habitantes já se foram a anos, mas esqueceram fotos que ninguém se importou de tirar dali. Limpar a mansão era uma missão por si, era um lugar muito grande para uma só pessoa viver ali. Depois de alguns meses, percebi que ela nem sequer passava muito tempo na mansão, apenas chegava tarde, quase cambaleando, de madrugada, e voltava para trabalhar cedo. Creio que no fundo ela sabia o quão grande aquele lugar era, que aquilo a assustava, a incomodava. Visitava apenas algumas salas, e me dizia para não limpar as outras, não era necessário. Eu gostava de limpar.
Você tem algum problema. Ela dizia. Daria uma ótima esposa, ou uma empregada doméstica. Não, não seria justo, nenhuma empregada sabe jardinagem. Isso sim é ridículo.
A voz dela era calejada, seca como a própria pele. Mas não era problema, não me irritava.
As vezes ela sentava na poltrona e olhava profundamente para a janela e ficava assim por horas, antes de dormir. Olhos que brilhavam como faróis de um carro a noite. Eu nunca peguntei nada, não era esse tipo de pessoa. Mas não foi necessário, ela gostava de conversar. Depois de algum tempo, ela me disse que estava vigiando, para ter certeza que não havia ninguém do outro lado da janela, pronto para pular no nosso lado e nos matar, mas eu sei que é mentira. Eu acho que ela esperava alguém aparecer, mas não um assassino.
Você se acostuma com esse tipo de coisa, mesmo os gritos dela pararam de me incomodar depois de alguns meses. Ela se acostumou com minha presença, parou de colocar a mão na arma toda vez que abria a porta e me via, ou trancar as portas dos corredores sem razão nenhuma.
Estações passaram rápido. Eu fiquei melhor no meu trabalho, fazer a comida, arrumar os quartos, resolver as contas, manter as máquinas e cuidar do jardim. Fiquei melhor em entendê-la, também. Sabia que tinha um problema no braço e não conseguia alcançar coisas muito altas, e que devido a um acidente, não conseguia gritar ou levantar a voz. Ela não era o monstro assustador que eu vi quando era pequeno, mas os olhos determinados e o sorriso tolo, eles eram mais reais do que qualquer monstro. E não enfraqueceram nunca, nem no último instante.
O que está pensando? Ela perguntou, limpando a boca com o papel.
Eu balancei minha cabeça e servi o vinho.
Vamos, não seja uma criança, eu conheço esse rosto.
Ela se levantou e pegou um dos livros na mesa. Eu coloquei os talheres na mesa. Ela me entendia bem, eu não era uma pessoa que gostava de fazer perguntas, mas nem por isso elas não existiam.
Por que não tem ninguém aqui? Além de nós dois?
Eu virei o rosto, olhando para o corredor do lado da sala. Havia quartos e quartos vazios, o lugar era grande o suficiente para eu não ter entrado em algum deles ainda.
Eu já estou aqui a um ano, mas nunca vi nenhum guarda-costas, nunca. Nem mesmo um cozinheiro. Como você sobrevivia, senhoria?
Ela olhou para mim e riu, quase engasgando.
Por mais que cozinhe bem, você não precisa desses pratos de rico para viver. Você sabe disso melhor do que ninguém.
Ela me deu um peteleco na testa e passou pela porta, mas parou, não olhou para trás.
Eu não preciso de mais corpos nessa casa. Se estiver com medo, a porta está sempre aberta.
Ela saiu, mas ainda ouvi ela murmurando.
E para de me chamar de senhoria, pivete.
As vezes ela não aparecia de noite, nem de dia. Eu ficava preocupado, não conseguia me concentrar em nada, nem mesmo nas plantas, mas não havia o que fazer. Não podia sair da mansão nem fazer nada, apenas esperar. Ela sempre voltava, sempre. Isso eu tinha certeza, podia demorar dias, uma semana, mas ela sempre aparecia gritando de noite, bêbada ou passando mal. Cuidar dela podia ser um trabalho difícil, principalmente com aquela arma na mão. Eu tive que aprender a me defender, li alguns livros de artes marciais, mas sempre pareceu brincadeira de criança. Eram bons exercícios, ao menos. E fazia-a rir.
Eu li em algum livro de folclore que o motivo pela qual vampiros não saem no sol é porque estão amaldiçoados a viver em isolação, longe de todos aqueles que conheceram, de todas as possibilidades e sonhos. São abominados pela natureza. Presos em uma gaiola que ajudaram a construir, que os permitia andar na terra para sempre, com o custo de não ver sua família ou seus amados. Eles possuem, apesar disso, uma saída obvia, tão simples como dar um passo e tudo acaba.
Eu sentiria pena se criaturas assim realmente andassem pela terra.
No caso dela, eu não sabia se sentia amor ou pena. Quem sabe um pouco dos dois. Depois que fui crescendo e ficando velho, isso se transformou em uma espécie de admiração. Por mais que fosse tratada como uma pessoa perigosa, por mais que estivesse presa as leis e regras que construiu para si e para seus membros, ela nunca deixou de se divertir. Ela saia, bebia, lia, sempre sorria, por pior que parecesse. Ela fez mais do que eu poderia fazer na vida, porque ela tinha coragem.
Não mudei muito, continuei o mesmo covarde vagando nas ruas, dessa vez escondido nas gaiolas dessa mansão, com medo de mais para enfrentar a sociedade que me abandonou, de ter que olhar para os outros. Eu me escondi aqui por egoismo próprio, usando-a como uma desculpa, como um brinquedo que precisava ser concertado, que precisava de mim, e creio que ela saiba disso também.
Não era o caso, eu que precisava dela, e só percebi isso depois. O paraíso perfeito e longe do mundo que ela havia criado foi se desfazendo. Pessoas vieram visitar, mais e mais homens a acompanhavam até em casa, guardas foram colocados aos redores da mansão. Ela discutia com outros membros na mesa de jantar, apontando para mapas e dando ordens. Era tão incrível, a calma, a compostura. Olhando ela de longe, eu mal via aquela mulher insensível que chegava em casa bêbada as quatro da manha. Ela sabia o que fazia, sabia que a vida daqueles homens estava em sua mão.
Não precisava de mim para nada daquilo. Então eu resolvi parar de atrapalhar.
Eu conheço esse olhar disse. O que foi? Eu deixei algum livro fora da prateleira de novo? Esqueci de trancar a porta?
Estava almoçando. Ela me conhecia bem.
Eu vou embora.
O que? Ela riu. Não gosta mais de me ver comendo? Você pode pegar um lugar, se quiser.
Eu vou embora da mansão. Vou me mudar.
Ela olhou para mim, em confusão.
Eu agradeço por tudo o que fez por mim. Eu me abaixei. Mas eu tenho que ir.
O que quer dizer? Ela peguntou, deixando os talheres cairem na mesa. Você não está falando sério, está?
Eu balancei a cabeça, precisava parar de me esconder atrás dela. Ela se virou, eu não consegui ver seus olhos. Estava silencioso.
Mas você não pode Ela respirou. Eu fiz algo de errado?
Eu meneei a cabeça.
Eu não posso ficar aqui.
Alguém está te ameaçando, ou algo assim?
Não.
Por quê?! Me diga, o que eu fiz? São os meus homens? Eles te trataram mal? Disseram algo? Eu posso tirá-los daqui. Apenas me diga.
Eu meneei a cabeça. Ela colocou as mãos na mesa, como se fosse sair dali, mas parou.
Que dia você pretende ir?
Amanhã, eu já fiz minhas malas.
Para onde você vai?
Eu meneei minha cabeça. Não sabia.
Ela pareceu que diria algo, mas parou. Silêncio.
Ela se levantou e saiu pela porta, sem olhar para mim. Não terminou o jantar.
No outro dia, eu estava do outro lado de fora, de malas prontas. Alguns guardas que eu cheguei a conhecer me complementaram, me agradeceram pelo meu trabalho. Eles me ofereceram uma carona, mas eu recusei, sem ser rude, e me deram um adeus.
Ela não apareceu na porta, nem a vi pela janela do quarto. Eu peguei um táxi, pedi para ele dirigir até onde conseguisse. Eu só queria sair dali. Não sabia porque estava tão irritado, quem sabe esperava algo a mais pelo meu trabalho duro, pelos anos aparando aquele jardim, cozinhando ou algo assim. Eu não tinha o direito.
Eu nunca mais a vi depois daquilo, juro ter visto-a no portão correndo, assim que o táxis passou, mas tenho certeza que foi minha mente me iludindo, eu queria tanto que fosse verdade. Que eu fosse realmente útil, que eu merecesse um adeus.
Depois daquilo, achar um trabalho e comprar uma casa foi difícil, eu não tinha conhecimento de nada, nunca tinha feito trabalho nenhum, tirando a limpeza que fazia na mansão. Os homens da gague me ligaram algumas vezes, oferecendo ajuda, mas eu recusei. Queria começar minha vida por mim mesmo, mostrar que era capaz, que não precisava me esconder, que podia lutar contra a gaiola em que estava preso desde minha infância, do meu medo. Eu consegui um trabalho simples limpando e cuidando de um orfanato no centro, eu tinha um jeito com crianças, ou algo assim. Consegui me sustentar e pagar o débito da minha nova casa. Não era do tamanho de um quarto pequeno da mansão, nem do depósito, mas isso não me importava. Era meu, eu podia chamar de casa, era pequeno, confortável e perfeito. Eu arranjei uma mulher, uma das moças que queria adotar uma criança., nos conhecemos em um café e chegamos a sair. Ela era uma mulher linda, com olhos castanhos de madeira polida, uma expressão de amável satisfação. Trabalhava o dobro do que precisava, apenas para caso alguém aparecesse no hospital a noite, eu não me importava com isso. Nós adotamos uma criança, uma menina.
Eu nunca esqueci a senhoria da mansão, o sol que brilhava tão forte que cegava a todos ao seu redor, que sempre sorria e sempre sabia o que fazer. Fiquei me perguntando se ela se lembrava de mim, se ela me culpava, se ela me odiava, ou se ela sequer sentia falta do chá que eu a fazia toda manhã. Se eu podia ter feito algo diferente. Ela não me pedia nada além disso.
Ela me ligou um dia. Mal acreditei nos meus ouvidos, minha mão tremia. Eu pensei que gritaria, que imploraria para eu voltar, que diria o quanto me odeia, ou algo do tipo, qualquer coisa. Ela me cumprimentou, deu-me os parabéns pela minha família, desejou boas sortes, disse que me amava e me desejava um futuro feliz. Foi uma conversa normal, como eu teria com qualquer vizinho. Eu não acho que ela estava fingindo, nem nada. Ela realmente me desejava aquilo. Eu desliguei e percebi que estava chorando, nunca tinha me dado ao luxo de algo tão ridículo.
Uma semana depois eu ouvi nos noticiários que ela tinha morrido. Levou três tiros no peito. Um dos membros veio a minha casa, ele estava desesperado. Nós bebemos chá e ele contou que ela foi morta em uma briga violenta entre duas facções dentro da organização. Ela estava sangrando quando me ligou, tinha uma bala no peito na hora, de acordo com os números no telefone. Ela estava sangrando.
E eu nem percebi. Estava com tanto medo e raiva que não percebi. Ela nunca perdeu o sorriso, até o final.
Se eu me arrependo de ter ido embora? Não posso realmente dizer. Os resultadores teriam sido diferentes? Não sei. Eu daria qualquer coisa para ela estar aqui, para não ter que ver o meu sol enterrado debaixo da terra. Mas eu tenho uma família, uma casa. E, mais importante, eu não tenho direito algum nisso.
Ela sabia o que fazia, sabia os perigos do serviço. Disse-me várias vezes que morreria com balas no corpo, mas não se importava. Ela tinha uma confiança assustadora. Eu só queria ter estado lá.
Ela era o sol, amada por aqueles que a conheceram de longe. A luz que destruía qualquer sombra, que te fazia se sentir seguro, amado, por mais perigosa que fosse. Muitos a odiavam, sem perceber que estariam perdidos sem ela.
Dias que se vão.
Ela era como o sol. Quente demais para ser observada de perto, não se olhava diretamente, era apreciada de longe, mas todos tinham medo de chegar perto. Era a luz que guiava-os pela escuridão, mas todos sabiam que um dia ela explodiria, eliminando todos sobre seu cuidado, e os deixariam nas sombras. Eles juraram lealdade, mas a temiam. Eles a cumprimentavam, mas não a olhavam nos olhos e fugiam do sol. Muitos a odiavam, sem perceber que estariam perdidos sem ela.
Eu, no caso, não era nada disso. Eu sou apenas um velho, alguém que teve a sorte de estar no lugar certo, na hora certa, e que deve sua vida a uma pessoa que conheceu por acidente, em um momento ruim. Ela nunca me pediu nada, mas eu não era desses que recebia dinheiro e corria para as montanhas ou gastava tudo com remédios e bebida. Não gostava de dever as pessoas, nem aos meus pais devia um centavo, muito menos a uma mulher do calibre dela. Eu figuei, onde ninguém mais queria ficar. Quem sabe foi por alguma razão oculta, um desejo juvenil que desapareceu cedo demais para afetar nossa relação. Relação essa que nunca existiu, devo dizer, não por falta de tolas tentativas minhas.
Algo que você aprende rápido vivendo com um membro de gangue, principalmente alguém como ela, é que as imagens que temos de James Bond e filmes de rua são muito diferentes do que acontece de verdade. Isso pode parecer obvio, mas não é, ou não era para mim. Eu estava preparado para pegar uma arma se ela pedisse, estava preparado para enterrar corpos ou invadir casas. Mas isso nunca aconteceu. Ela nunca me pediu nada além de chá. Sem muito o que fazer, eu virei um ajudante doméstico. Ridículo, eu sei, mas é mais divertido do que parece, você pode aprender muita coisa varrendo tapetes de cem anos, ou limpando quartos cujos habitantes já se foram a anos, mas esqueceram fotos que ninguém se importou de tirar dali. Limpar a mansão era uma missão por si, era um lugar muito grande para uma só pessoa viver ali. Depois de alguns meses, percebi que ela nem sequer passava muito tempo na mansão, apenas chegava tarde, quase cambaleando, de madrugada, e voltava para trabalhar cedo. Creio que no fundo ela sabia o quão grande aquele lugar era, que aquilo a assustava, a incomodava. Visitava apenas algumas salas, e me dizia para não limpar as outras, não era necessário. Eu gostava de limpar.
Você tem algum problema. Ela dizia. Daria uma ótima esposa, ou uma empregada doméstica. Não, não seria justo, nenhuma empregada sabe jardinagem. Isso sim é ridículo.
A voz dela era calejada, seca como a própria pele. Mas não era problema, não me irritava.
As vezes ela sentava na poltrona e olhava profundamente para a janela e ficava assim por horas, antes de dormir. Olhos que brilhavam como faróis de um carro a noite. Eu nunca peguntei nada, não era esse tipo de pessoa. Mas não foi necessário, ela gostava de conversar. Depois de algum tempo, ela me disse que estava vigiando, para ter certeza que não havia ninguém do outro lado da janela, pronto para pular no nosso lado e nos matar, mas eu sei que é mentira. Eu acho que ela esperava alguém aparecer, mas não um assassino.
Você se acostuma com esse tipo de coisa, mesmo os gritos dela pararam de me incomodar depois de alguns meses. Ela se acostumou com minha presença, parou de colocar a mão na arma toda vez que abria a porta e me via, ou trancar as portas dos corredores sem razão nenhuma.
Estações passaram rápido. Eu fiquei melhor no meu trabalho, fazer a comida, arrumar os quartos, resolver as contas, manter as máquinas e cuidar do jardim. Fiquei melhor em entendê-la, também. Sabia que tinha um problema no braço e não conseguia alcançar coisas muito altas, e que devido a um acidente, não conseguia gritar ou levantar a voz. Ela não era o monstro assustador que eu vi quando era pequeno, mas os olhos determinados e o sorriso tolo, eles eram mais reais do que qualquer monstro. E não enfraqueceram nunca, nem no último instante.
O que está pensando? Ela perguntou, limpando a boca com o papel.
Eu balancei minha cabeça e servi o vinho.
Vamos, não seja uma criança, eu conheço esse rosto.
Ela se levantou e pegou um dos livros na mesa. Eu coloquei os talheres na mesa. Ela me entendia bem, eu não era uma pessoa que gostava de fazer perguntas, mas nem por isso elas não existiam.
Por que não tem ninguém aqui? Além de nós dois?
Eu virei o rosto, olhando para o corredor do lado da sala. Havia quartos e quartos vazios, o lugar era grande o suficiente para eu não ter entrado em algum deles ainda.
Eu já estou aqui a um ano, mas nunca vi nenhum guarda-costas, nunca. Nem mesmo um cozinheiro. Como você sobrevivia, senhoria?
Ela olhou para mim e riu, quase engasgando.
Por mais que cozinhe bem, você não precisa desses pratos de rico para viver. Você sabe disso melhor do que ninguém.
Ela me deu um peteleco na testa e passou pela porta, mas parou, não olhou para trás.
Eu não preciso de mais corpos nessa casa. Se estiver com medo, a porta está sempre aberta.
Ela saiu, mas ainda ouvi ela murmurando.
E para de me chamar de senhoria, pivete.
As vezes ela não aparecia de noite, nem de dia. Eu ficava preocupado, não conseguia me concentrar em nada, nem mesmo nas plantas, mas não havia o que fazer. Não podia sair da mansão nem fazer nada, apenas esperar. Ela sempre voltava, sempre. Isso eu tinha certeza, podia demorar dias, uma semana, mas ela sempre aparecia gritando de noite, bêbada ou passando mal. Cuidar dela podia ser um trabalho difícil, principalmente com aquela arma na mão. Eu tive que aprender a me defender, li alguns livros de artes marciais, mas sempre pareceu brincadeira de criança. Eram bons exercícios, ao menos. E fazia-a rir.
Eu li em algum livro de folclore que o motivo pela qual vampiros não saem no sol é porque estão amaldiçoados a viver em isolação, longe de todos aqueles que conheceram, de todas as possibilidades e sonhos. São abominados pela natureza. Presos em uma gaiola que ajudaram a construir, que os permitia andar na terra para sempre, com o custo de não ver sua família ou seus amados. Eles possuem, apesar disso, uma saída obvia, tão simples como dar um passo e tudo acaba.
Eu sentiria pena se criaturas assim realmente andassem pela terra.
No caso dela, eu não sabia se sentia amor ou pena. Quem sabe um pouco dos dois. Depois que fui crescendo e ficando velho, isso se transformou em uma espécie de admiração. Por mais que fosse tratada como uma pessoa perigosa, por mais que estivesse presa as leis e regras que construiu para si e para seus membros, ela nunca deixou de se divertir. Ela saia, bebia, lia, sempre sorria, por pior que parecesse. Ela fez mais do que eu poderia fazer na vida, porque ela tinha coragem.
Não mudei muito, continuei o mesmo covarde vagando nas ruas, dessa vez escondido nas gaiolas dessa mansão, com medo de mais para enfrentar a sociedade que me abandonou, de ter que olhar para os outros. Eu me escondi aqui por egoismo próprio, usando-a como uma desculpa, como um brinquedo que precisava ser concertado, que precisava de mim, e creio que ela saiba disso também.
Não era o caso, eu que precisava dela, e só percebi isso depois. O paraíso perfeito e longe do mundo que ela havia criado foi se desfazendo. Pessoas vieram visitar, mais e mais homens a acompanhavam até em casa, guardas foram colocados aos redores da mansão. Ela discutia com outros membros na mesa de jantar, apontando para mapas e dando ordens. Era tão incrível, a calma, a compostura. Olhando ela de longe, eu mal via aquela mulher insensível que chegava em casa bêbada as quatro da manha. Ela sabia o que fazia, sabia que a vida daqueles homens estava em sua mão.
Não precisava de mim para nada daquilo. Então eu resolvi parar de atrapalhar.
Eu conheço esse olhar disse. O que foi? Eu deixei algum livro fora da prateleira de novo? Esqueci de trancar a porta?
Estava almoçando. Ela me conhecia bem.
Eu vou embora.
O que? Ela riu. Não gosta mais de me ver comendo? Você pode pegar um lugar, se quiser.
Eu vou embora da mansão. Vou me mudar.
Ela olhou para mim, em confusão.
Eu agradeço por tudo o que fez por mim. Eu me abaixei. Mas eu tenho que ir.
O que quer dizer? Ela peguntou, deixando os talheres cairem na mesa. Você não está falando sério, está?
Eu balancei a cabeça, precisava parar de me esconder atrás dela. Ela se virou, eu não consegui ver seus olhos. Estava silencioso.
Mas você não pode Ela respirou. Eu fiz algo de errado?
Eu meneei a cabeça.
Eu não posso ficar aqui.
Alguém está te ameaçando, ou algo assim?
Não.
Por quê?! Me diga, o que eu fiz? São os meus homens? Eles te trataram mal? Disseram algo? Eu posso tirá-los daqui. Apenas me diga.
Eu meneei a cabeça. Ela colocou as mãos na mesa, como se fosse sair dali, mas parou.
Que dia você pretende ir?
Amanhã, eu já fiz minhas malas.
Para onde você vai?
Eu meneei minha cabeça. Não sabia.
Ela pareceu que diria algo, mas parou. Silêncio.
Ela se levantou e saiu pela porta, sem olhar para mim. Não terminou o jantar.
No outro dia, eu estava do outro lado de fora, de malas prontas. Alguns guardas que eu cheguei a conhecer me complementaram, me agradeceram pelo meu trabalho. Eles me ofereceram uma carona, mas eu recusei, sem ser rude, e me deram um adeus.
Ela não apareceu na porta, nem a vi pela janela do quarto. Eu peguei um táxi, pedi para ele dirigir até onde conseguisse. Eu só queria sair dali. Não sabia porque estava tão irritado, quem sabe esperava algo a mais pelo meu trabalho duro, pelos anos aparando aquele jardim, cozinhando ou algo assim. Eu não tinha o direito.
Eu nunca mais a vi depois daquilo, juro ter visto-a no portão correndo, assim que o táxis passou, mas tenho certeza que foi minha mente me iludindo, eu queria tanto que fosse verdade. Que eu fosse realmente útil, que eu merecesse um adeus.
Depois daquilo, achar um trabalho e comprar uma casa foi difícil, eu não tinha conhecimento de nada, nunca tinha feito trabalho nenhum, tirando a limpeza que fazia na mansão. Os homens da gague me ligaram algumas vezes, oferecendo ajuda, mas eu recusei. Queria começar minha vida por mim mesmo, mostrar que era capaz, que não precisava me esconder, que podia lutar contra a gaiola em que estava preso desde minha infância, do meu medo. Eu consegui um trabalho simples limpando e cuidando de um orfanato no centro, eu tinha um jeito com crianças, ou algo assim. Consegui me sustentar e pagar o débito da minha nova casa. Não era do tamanho de um quarto pequeno da mansão, nem do depósito, mas isso não me importava. Era meu, eu podia chamar de casa, era pequeno, confortável e perfeito. Eu arranjei uma mulher, uma das moças que queria adotar uma criança., nos conhecemos em um café e chegamos a sair. Ela era uma mulher linda, com olhos castanhos de madeira polida, uma expressão de amável satisfação. Trabalhava o dobro do que precisava, apenas para caso alguém aparecesse no hospital a noite, eu não me importava com isso. Nós adotamos uma criança, uma menina.
Eu nunca esqueci a senhoria da mansão, o sol que brilhava tão forte que cegava a todos ao seu redor, que sempre sorria e sempre sabia o que fazer. Fiquei me perguntando se ela se lembrava de mim, se ela me culpava, se ela me odiava, ou se ela sequer sentia falta do chá que eu a fazia toda manhã. Se eu podia ter feito algo diferente. Ela não me pedia nada além disso.
Ela me ligou um dia. Mal acreditei nos meus ouvidos, minha mão tremia. Eu pensei que gritaria, que imploraria para eu voltar, que diria o quanto me odeia, ou algo do tipo, qualquer coisa. Ela me cumprimentou, deu-me os parabéns pela minha família, desejou boas sortes, disse que me amava e me desejava um futuro feliz. Foi uma conversa normal, como eu teria com qualquer vizinho. Eu não acho que ela estava fingindo, nem nada. Ela realmente me desejava aquilo. Eu desliguei e percebi que estava chorando, nunca tinha me dado ao luxo de algo tão ridículo.
Uma semana depois eu ouvi nos noticiários que ela tinha morrido. Levou três tiros no peito. Um dos membros veio a minha casa, ele estava desesperado. Nós bebemos chá e ele contou que ela foi morta em uma briga violenta entre duas facções dentro da organização. Ela estava sangrando quando me ligou, tinha uma bala no peito na hora, de acordo com os números no telefone. Ela estava sangrando.
E eu nem percebi. Estava com tanto medo e raiva que não percebi. Ela nunca perdeu o sorriso, até o final.
Se eu me arrependo de ter ido embora? Não posso realmente dizer. Os resultadores teriam sido diferentes? Não sei. Eu daria qualquer coisa para ela estar aqui, para não ter que ver o meu sol enterrado debaixo da terra. Mas eu tenho uma família, uma casa. E, mais importante, eu não tenho direito algum nisso.
Ela sabia o que fazia, sabia os perigos do serviço. Disse-me várias vezes que morreria com balas no corpo, mas não se importava. Ela tinha uma confiança assustadora. Eu só queria ter estado lá.
Ela era o sol, amada por aqueles que a conheceram de longe. A luz que destruía qualquer sombra, que te fazia se sentir seguro, amado, por mais perigosa que fosse. Muitos a odiavam, sem perceber que estariam perdidos sem ela.